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26/02/2023

[autoficções #4] And I draw a line to your heart today

[*Filme: Um dia, um gato/ When the cat comes/The Cassandra Cat; Vojtěch Jasný (1963)]

Não tenho lido nada [iniciar ano com leitura sem graça dá nisso], não tenho desenhado/pintado e minha saúde já esteve melhor, porém bateu tremenda vontade de conversar. Além do mais, alguém precisa alimentar o banco de dados das I.A.'s de Texto & Imagem, confere? Post singelo, trazendo alguns desenhos/pinturas do ano passado, os quais ajudarão a puxar assunto, misturados a breves entradas diarinho, combinado? Bora lá.

💬 Eis que o tcheco Um dia, um gato/ When the cat comes, de Vojtěch Jasný, deu as caras na MUBI, e finalmente pude vê-lo — a espera valeu, gostei. Já joguei uma cena/frase excelente do filme no topo deste post, mas também preciso guardar a passagem na qual as crianças começam a pintar como imaginam (sem que o professor peça, ressalto) o gato da história que escutam; um gatinho especial que cobre os olhos com óculos escuros, a fim de não revelar as verdadeiras cores das pessoas. Caramba, lindo demais. 👇



💬 A autora japonesa Sayaka Murata concedeu uma ótima entrevista ao Louisiana Channel [link: Writer Sayaka Murata 村田沙耶香 | Louisiana Channel], e registro aqui o fascinante processo criativo compartilhado pela autora. Murata explica que, para criar suas histórias, ela desenha suas protagonistas num caderno, construindo um pequeno aquário de personagens. Colo esse achado na postagem porque ele incidentalmente se conecta belamente à elaboração criativa das crianças no filme de Jasný: elas escutam a história falada, transferindo-a em desenho no papel; enquanto Murata, por sua vez, desenha a história no papel, para então transformá-la em história escrita. Claro que não estou chorando, que ridículo seria.
"Quando escrevo romances, uso cadernos. Eu rascunho a personagem no caderno — não apenas seu rosto, mas também sua altura e roupas, para saber de onde ela vê o mundo, o lugar onde ela cresceu e viveu durante a infância. Quando termino a protagonista, desenho as personagens que a rodeiam. Enquanto as desenho e as nomeio desse modo, elas automaticamente começam a conversar entre si; daí eu escrevo as cenas. É como se eu estivesse construindo um aquário (...) onde coloco minhas personagens. (...) Em seguida, começo a mudar o mundo onde estão. Quando faço coisas diferentes, todos no aquário começam a se mover, então a história naturalmente se revela; momento em que escrevo o que observo.         
— Sayaka Murata.
P.S.: Terráqueos já está na fila para leitura em 2023, portanto Murata poderá visitar mais uma vez o blog. O Querida Konbini já rendeu post: aqui.


💬 Não lembro de que forma começou ou por que deixei acontecer, porém confesso que estou circulando por dois becos de elevada periculosidade do You Tube: os nichos das entusiastas de caneta-tinteiro e as de fotografia. Exato; necessito encontrar forças para não sucumbir, caso queira evitar irreparável e certa derrocada financeira. Quanto às canetas-tinteiros (por ora, possuo somente uma modesta Kaküno), acredito que será fácil resistir, pois me parece um hobby algo peculiar [galera da papelaria na internet se parece assustadoramente com fã de marcas (destaco algumas recorrências observadas: Superior Labor, Hobonichi, Kaweco, Sailor, TWSBI...); rolam uns papos bem bizarros, acho. Até a caligrafia da galera se torna igual; doideira], mas quanto à fotografia, receio de que não haverá remédio. Nos próximos dias, pretendo decidir e fechar a compra de uma câmera e set de lentes; a ver. Será algo de entrada e de baixo orçamento — e desejem-me sorte, pois pretendo me aventurar no AliExpress. [*Atualizando em 03/03: claro que deu ruim ao tentar comprar lá; pelo menos a merda ocorreu logo na saída. Por que insisto no erro, jesus?]  Assim, além de desenhos e pinturas ruins, possivelmente também trarei fotos de qualidade duvidosa para o blog, em futuro incerto. Yay! Anoto uns objetos de estudo que me inspiram neste projetinho de fotos: aquelas pequenas flores de mato para as quais ninguém liga, os cãezinhos e capivaras do parque, passarinhos e insetos. 


💬 Por falar #1 em fotografia e MUBI, trago esta minha pintura da cena de um filme que vi por lá (guache + aquarela):

Madeira e Água (2021), de Jonas Bak, narra a história de uma alemã viúva e aposentada que viaja à Hong Kong, durante os protestos de 2019, para visitar o filho. Adorei a delicadeza do filme; os momentos de silêncio e solidão da personagem, bem como a relação estabelecida com a paisagem por onde ela circula, me tocaram bastante. Esta pintura me ajudou a consolidar uma lição importante, explico-a rapidinho: quando comecei a desenhar/pintar e esbarrei na câmera fotográfica, paralisei porque "como diabos se desenha uma câmera fotográfica?", contudo logo me lembrei de que "calma, sem estresse; basta desenhar as formas, sombras e luzes que enxergo, e a imagem há de se materializar." E não é que se materializou legal?

E pinço um momento logo no início do filme, quando a personagem vê-se obrigada a passar a primeira noite no país num quarto de albergue. Uma jovem no beliche puxa conversa com essa senhora turista, contando-lhe as perícias de sua viagem que se encerrava naquela noite, quando então pausa e emenda tão gentil: "— Desculpe, esta é minha história. A sua está apenas começando." Quer dizer, até aqui, meu post pensa em: desenhar histórias, fotografar histórias, contar histórias, ouvir histórias, escrever histórias, viver histórias.


💬 Por falar #2 em caneta-tinteiro e MUBI, ano passado pintei uma cena do filme A Ilha de Bergman (2021), de Mia Hansen-Løve (aquarela):
 
Não consigo descrever o quanto gostei desse filme (a primeira metade, ressalvo), entretanto afirmo que, ao final, eu só queria saber de embarcar para uma ilha sueca carregando cadernos, livros e canetas-tinteiros debaixo do braço, e por lá passear de bicicleta e nadar com águas-vivas. Puxa, adoro essa diretora — ah, e a atriz, Vicky Krieps! Por sinal, devo finalizar um retrato dela que desenhei no fim do ano passado, quase pronto. 

[P.S.: é, não nego que mulheres contemplativas, olhando para o espaço (janelas!!), é um apreciado tema.]

*
[ATUALIZAÇÃO 26/03/23:] Pronto, desenho da Krieps finalizado (*grafite; lápis de cor). 


***
Pera, impensável falar de águas-vivas e ilhas suecas, sem trazer de volta um de meus poemas favoritos, do sueco Tomas Tranströmer (que poeta subestimado por estas bandas brasileiras, pessoal; por quê? / *tradução: Marcia Schuback):
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[ATUALIZAÇÃO 26/03/23:] Como casa com o tema, colarei esta pintura que também finalizei agora, usando como referência a imagem de um mini vídeo publicado no Instagram pelo artista Scott Campbell [era a visita da filha dele (creio) ao Aquário Nacional de Baltimore.] (*guache)
*
E que coincidência!: vejo que uma artista de São Francisco, que comecei a acompanhar faz pouco tempo no You Tube (Christina Kent), acaba de postar um breve vídeo no qual pinta in loco a ilha de Alcatraz. Putz, é totalmente meu tipo de rolê, queria demais. Ilhas são realmente paisagens especiais, não tem jeito. Felizmente, já tive oportunidade de visitar a ilha de Alcatraz e fiquei absolutamente encantada com o lugar, o que me desconcertou um pouco, dado seu peso histórico. No entanto, o livro Slouching Towards Bethlehem Rastejando até Belém, de Joan Didion, inclui um texto que me apaziguou os sentimentos, pois Didion assegura que, por mais que ela própria tente imaginar aquele espaço como a prisão que um dia foi, não consegue desgostar dali. Trago trechinho do que ela escreveu, anotado com carinho num de meus cadernos:

 

"It is not an unpleasant place to be, out there on Alcatraz with only the flowers and the wind and a bell busy moaning and the tide surging through the Golden Gate (...) I liked it out there, a ruin devoid of human vanities, clean of human illusions, (...) I came back because I had promises to keep, but maybe it was because nobody asked me to stay."  — Joan Didion. 


Ok, talvez uma visita à ilha de Fårö seja muito complicada (será? caro, com toda certeza seria), enquanto uma revisita à Alcatraz seja mais factível? Por enquanto, retornemos via foto:
(*apaixonada pela gaivota lá atrás, inspecionando o que eu aprontava com malabarismos, para me fotografar sem ajuda.)


💬 Voltarei à MUBI [juro que este post não é patrocinado, mas, hey, fico à disposição da plataforma] para fixar no blog outra bela passagem de filme envolvendo desenhos. Na obra Il Buco (2021), de Michelangelo Frammartino, nada acontece, a paisagem é absurdamente linda e o silêncio prevalece (ou seja, lógico que amei). Acompanhamos a expedição do Grupo Espeleológico do Piemonte, ocorrida em agosto de 1961, o qual se dirigiu ao sul da Itália (Calábria) para explorar a caverna do Abismo Bifurto, então desconhecida. Em paralelo aos trabalhos da equipe, há cenas de um aldeão que pastoreia a região (ator? suspeito de que seja um local escalado pelo diretor), um senhor com uma mirada super intensa (sério, ele está fantástico em cena). Daí, dentre os membros do grupo, há um cartógrafo que, à medida que a exploração avança, desenha o mapa da caverna. As cenas nas quais o pesquisador trabalha no mapa, usando nanquim e bico de pena, paralelamente ao que vemos ocorrer com o aldeão e à própria paisagem italiana, é lindo, lindo, lindo. Depois desse, Frammartino é outro diretor que entrou no peito, sem dúvidas, pois também aprecio o Le Quattro Volte (2010).

Inclusive, que parceria espetacular, não? Cavernas e Ilhas. Sim, colocarei esses elementos no meu hipotético aquário criativo — ao lado das canetas-tinteiros, máquinas fotográficas, frascos de tinta, águas-vivas e gatinhos de óculos escuros. Está ficando bonito.

(ah, este fundo cego... o percurso na caverna: everything was beautiful, and nothing hurt.)


💬 Para não dizer que não estou lendo nada, vale comentar brevemente que leio (aos pouquinhos, com calma) a coletânea de cartas que Van Gogh escreveu ao irmão Théo (dívida antiga minha). Estou radiante por me deparar com comentários tão ricos, generosos e honestos de Van Gogh acerca de seu processo criativo e de sua própria formação artística — que material valioso são estas cartas; e o quanto desmistifica a ideia de genialidade mágica. Reservarei impressões mais detalhadas para um possível post futuro (há tanto por falar), contudo, dado que minha pintura anterior do A Ilha de Bergman foi feita com aquarela, é imperioso destacar o quanto me satisfez ver Van Gogh corroborar que aquarela é coisa do diabo ("A aquarela é algo diabólico." - tradução: Pierre Ruprecht). Puta material desgraçado sim. Tenho curtido bem mais o guache e já investi numas tintas de cores primárias da Royal Talens (porém os vidrinhos são tão lindos, que persisto com pena de usar; daí continuo brincando com o baratinho HIMI).

"(...) a aquarela exige uma grande habilidade e uma grande rapidez no trabalho. Deve-se trabalhar no material meio úmido para obter harmonia, e não há muito tempo para pensar. Trata-se, portanto, não de trabalhar fragmentadamente, e sim de esboçar quase de um só golpe só (...)"       

                                                                                 — Van Gogh.

 


💬 Outro filme que invadiu minhas pinturas do ano passado foi Holy Motors (2012), do Carax (guache):

Visto que os filmes prévios do Carax aos quais assisti não me deixaram extasiada, me surpreendi um bocado com o quanto amei esse filme. Dane-se, tascarei um perfeito — poxa, tem tudo que valorizo: boas atuações, silêncios, é engraçado e triste na medida (piada discreta com assunto tabu? sou a favor; melancolia infinita? principalmente), sem pé nem cabeça, e ao mesmo tempo possui todo o sentido para instigar reflexões complexas; e tudo isso sem se levar a sério. No meu dicionário, é perfeito mesmo. Inclusive, percebi que o grande equívoco de Carax no filme Annette (2021) foi não ter escalado Denis Lavant para o papel do protagonista (perdão aí, Adam Driver).  AH! Não posso deixar de comentar: vi graças à plataforma Cine Sesc Digital; tremenda iniciativa massa.

Para encerrar estes devaneios, escolho transcrever a resposta da personagem de Lavant à pergunta acerca do motivo que a faz prosseguir fazendo o que faz. Trago a frase porque, em parte, ela ajuda a justificar minha dedicação a este humilde e inconsequente blog em pleno 2023, ano em que apenas robôs de I.A. e de indexação leem coisas na internet. [Suponho, a propósito, que seja a mesma razão por que Carax prossegue fazendo seus filmes. E que bom.]
"— O que me motiva desde o início: a beleza do gesto."
(guache - minha pinturinha de 2022 que mais curti. This is the way, I guess)

13/03/2021

[alinhavando] eta barulhinho bom!

  




🔊 Concluí a mudança de apartamento em fevereiro, porém, como a nova escrivaninha chegou há apenas alguns dias, só agora retorno ao blog. Não; seguindo a praxe, não significa que tenho algo relevante pra registrar, mas apenas que bateu uma intensa vontade de escrever um bocadinho, o que atribuo ao aniversário de um ano de isolamento/distanciamento social. Conforme aponta Amanda Mull em artigo publicado no The Atlantic, a pandemia pausou as relações sociais casuais que, para o bem ou mal, eram basicamente do que eu dispunha para trocar ideia com um ser humano. (- A resposta é sim, Dr. Dráuzio.) Atualmente, conto com as mensagens diárias no whatsapp estritamente relacionadas ao trabalho (voltarei a esse tema), assim como as ligações para a família que reside noutro estado, a fim de saber, principalmente, se estão todos bem. Portanto, na falta de outra possibilidade concreta de jogar conversa fora com uma pessoa, o faço comigo mesma mediante a escrita no blog. (Meio deprê, né? Oh, well.) Planejo adotar a singela tática desta personagem de Kafka:
"(...) escrever ao amigo só sobre incidentes insignificantes, da maneira como estes se acumulam desordenadamente na lembrança, quando se reflete sobre eles num domingo tranquilo."
                                                            - O Veredito; Franz Kafka (Tradução: Modesto Carone)

Do que diabos estou falando?! E essa já não é minha estratégia predominante no blog? Nem saberia escrever de modo diferente. Aliás, a tática da personagem é singela, mas esse adjetivo não serve para caracterizar o conto de Kafka. Talvez não seja o momento oportuno para ler o autor, porém, de fato, tem sido pra mim; sobretudo porque meu novo trabalho (nem tão novo mais) me lançou numa realidade que me parece insana. Sabe quando a gente pergunta pra uma amiga "vem cá, eu não tô ficando doida, tô? isso aqui é completamente sem sentido, não é? não é?". Pronto; o Kafka está na posição da amiga. Infelizmente a responsabilidade jurídica não me permite desabafar e divagar a respeito dessa conexão Kafka x Trabalho, contudo deixo esta pergunta: e aquele Na Colônia Penal, hein? Ô lôco, né? 


🔊 Mas não deixam de ser inusitadas, essas lamúrias pela perda dos papos furados diários que trocávamos antes do maldito vírus. Dia desses assisti ao filme Bom Dia (1959), do Yasujiro Ozu (♥️), e o discurso que o garotinho dispara quando o pai o manda se calar, parar de reclamar e falar tanto, me impressionou:
"São os adultos que falam demais. "Olá.", "Bom dia.", "Boa noite.", "O tempo está bom, não está?", "Sim, está.", "Aonde está indo?", "Ah, só caminhando por aí", "Ah, é?". Um monte de conversa fiada. "Entendo, entendo" - entendo o quê?!"
Ao final do filme, uma bela e simples cena sugere que a criança possivelmente precipitou-se ao criticar tão duramente as conversas banais do dia a dia. Em resumo, tratava-se do instante em que mais um diálogo corriqueiro permitia que um casal se aproximasse, que uma relação humana aos poucos se estreitasse e o prospecto de uma nova vida a dois surgisse. (assim começam as famílias de Ozu?) Para minha grata surpresa, o livro The Condition of Secrecy, coletânea de ensaios escritos pela poeta dinamarquesa Inger Christensen, me presenteou com uma citação de Novalis que, teorizo, é capaz de elucidar aquele desfecho do Ozu (tradução livre, a partir da tradução para o inglês por Susanna Nied):

"(...) conversação é um mero jogo de palavras. Só nos resta nos admirar com o risível erro que as pessoas cometem - acreditar que falam sobre coisas. Ninguém atina para o que é mais peculiar à linguagem, que ela refere-se apenas a si mesma. Por essa razão, é um mistério maravilhoso e fértil - quando alguém fala apenas por falar, expressa precisamente nesse momento a mais esplêndida e original das verdades. Já quando alguém deseja falar sobre algo específico, então a língua temperamental o faz dizer as coisas mais engraçadas e perversas."

                                     - Monólogo, Novalis; citado por Inger Christensen no ensaio It's All Words. 

Então, peço licença, do jeitinho de Isamu, para prosseguir falando groselha neste post. No entanto, basta apertar minha testa, que eu me calo e solto um peido; novo talento que aprendi com Isamu e seus sábios amigos. 

🔊 Beleza, retornemos à imagem que ilustra o topo desta postagem, extraída da série Pretend It's a City (Netflix), na qual Fran Lebowitz, a escritora que não escreve, mas reclama (e lê)® (?! - she's living the dream), ironiza os riquinhos que desembolsam U$500,00 numa sessão de terapia, só pra reclamar do barulho da cidade de Nova York. Obviamente entendo o ponto dela (pertinente, inclusive), MAS  < atenção, lá vem o choramingo da burguesa >, dado que ouvi essa fala no dia seguinte a uma intensa e longa crise de choro desencadeada pela descoberta de que eu me mudara para um apartamento onde os ruídos são intensos, não pude evitar o desbarato. Recentemente assisti ao filme A Montanha dos 7 Abutres (Billy Wilder, 1951), no qual um homem fica preso por seis dias numa mina, e a queixa que ele externa com maior desespero refere-se justamente ao contínuo barulho intervalar da perfuradora que tenta abrir caminho até ele, através da rocha. O sujeito implora para que, pelo amor de deus, parassem de perfurar, pois já não aguentava mais o som das insistentes pancadas. Puxa, me sensibilizou demais. Enfim, ainda que Lebowitz tenha lá razão (e tem mesmo), não se pode desconsiderar o quanto a poluição sonora afeta nossa saúde. Nesta época em que sequer podemos sair de casa, então, nem se fala; e Alceu Valença comparece para corroborar meu devaneio  - "a obra do vizinho não deixa o poeta dormir, pensar". Calcule a situação atual do novo velho lar: andar alto + próximo a uma linha de metrô elevada do solo e sem cobertura + próximo a avenidas com tráfego intenso nos horários de pico + dividindo paredes com dois apartamentos distintos + um dos vizinhos reformando a unidade + vizinhança de doguinhos que curtem latir 24h/dia + alarme sonoro de portão de garagem que dispara toda hora. Sim, estou ciente de que a única pergunta pertinente é "mas por que se mudou pra esse apê, sua imbecil??". Bom, num esforço para aliviar minha barra, elaboro a seguinte mequetrefe desculpa: ora, eu tive de ponderar todas as variáveis considerando a realidade de um mercado imobiliário ridículo; e após uma única visita de meros quinze minutos realizada pela manhã, fora do horário de pico, "portanto" acabei errando feio nos cálculos, inclusive na estimativa de minha tolerância a ruídos. De todo jeito, o choro está sob controle e esforço-me para desligar dos barulhos, porém admito que é complicado (e triste). Estou praticamente vivendo o que a família do filme Home (2008), da cineasta Ursula Meier, viveu; e receio terminar esta provação (mão no peito, olhos fechados) tal qual Isabelle Huppert: completamente louca, tapando todas as janelas e frestas da casa até morrer asfixiada. A fita crepe, já pus pra jogo; o próximo passo será a concretagem das janelas. E pensar que, quando vi esse filme, ri um bocado dos franceses que, subitamente, se veem morando à beira de uma rodovia. Bem feito pra mim.

Só agora percebo que essa lenga-lenga é quase uma metáfora ruim para a realidade atual, né? Estamos nos trancafiando em nossas casas, tapando os contatos com o mundo externo na tentativa de nos proteger de um vírus. Simultânea e perversamente, reconheço que eu deveria ter iniciado essa historinha com a mesma estupenda primeira frase do romance O Diabo no Corpo, de Raymond Radiguet: "Vou me expor a recriminações."Sim, pois, em meio a uma pandemia que tem gerado desemprego e miséria, é forçoso agradecer por, afinal, ter um trabalho, um salário para pagar as despesas de uma casa - ainda que barulhenta.

*: a propósito, esse deveria ser o nome do blog.


🔊 Para encerrar essa saga do novo velho lar, continuarei a me expor a recriminações, porque confessarei que também me entristeceram os pequenos problemas arquitetônicos e estruturais que fui descobrindo no apartamento, além de toda a dificuldade, logística e financeira, inerente a possíveis reformas e projetos de decoração. Achava que finalmente teria uma casa do jeito que eu sonhava e me dei mal. Igualmente não ajuda me estressar com qualquer manchinha/irregularidade na parede, qualquer porta que não fecha direito, qualquer lasquinha num móvel, qualquer cheiro estranho etc... Culpa do Instagram e de vídeos de decoração no Youtube? Pode ser, hein; pode ser. Enquanto assisto àquela série Schitt's Creek, os lençóis com os quais David veste sua cama sempre me enternecem. Ele até podia morar num motel forreca, agora que a família estava falida, mas ao menos sua cama ele faz questão de manter bonita. Sei que eu não teria essa força de espírito; que seguiria na vibe tá tudo uma merda mesmo, então foda-se.

Em meio a esse abatimento fútil, mal acreditei quando uma escritora japonesa do ano 1000/1001 (!!!!!!) veio ao meu socorro. Com a contribuição da incrível equipe de tradutoras que trabalharam na edição da Estação Liberdade Editora 34, Sei Shônagon acalentou meu coração:
"A casa de uma dama que vive sozinha apresenta-se bastante danificada: muro de terra batida por terminar, plantas aquáticas que invadem o lago e, embora o jardim ainda não esteja totalmente coberto de artemísias, podem-se ver ervas daninhas verdes por entre as pedrinhas - uma imagem de tanta solidão chega a comover. É tão desinteressante quando nada há para ser consertado, com o portão bem trancado e tudo na mais devida ordem, que nos enfastiamos muito."

- Sei Shônagon; O Livro do Travesseiro. (Tradução: Geni Wakisaka, Junko Ota, Lica Hashimoto,                                                                         Luiza Yoshida, Madalena Hasimoto)

Olha, vindas de uma mulher que tanto valorizava a beleza das coisas, essas palavras foram tocantes. No fim das contas, estou desencanando. Como a própria Shônagon também escreveu, as coisas feias existem no mundo (eu sou uma delas, caramba**) e não é possível evitá-las, nem deixar de registrá-las.
**:

                                                                                   
🔊 Quanto drama por tanta besteira, né? Nossa, nem eu me aguento mais com esse papo, o que pode ser outra consequência do isolamento extremo. Se Lebowitz estiver seguindo o isolamento com rigor (nem estou cobrando), estará satisfeita por reclamar apenas de si própria? É, pode ser que ela tenha dado uma pausa nas reclamações ixpertíneas, para focar apenas em suas leituras, vai saber. No conto The House of Fear, da Leonora Carrington, a protagonista assume sem cerimônias que, por ser super reclusa, acabava falando demais consigo mesma, tendendo a repetir as mesmas coisas. A personagem reconhece ser uma chata e que ela, melhor que qualquer um, tinha plena consciência disso. É aquilo: não há nada melhor do que ficar quieta no seu canto, sozinha, curtindo o silêncio..., MAS: durante um ano? Na versão extreme? Para espanto próprio, suspeito de que talvez seja excessivo, com efeitos colaterais geradores de um círculo vicioso potencialmente autodestrutivo.


🔊 Daí, tenho pensado com frequência nestas duas marcantes e especiais amizades que conheci ano passado:

- Emmanuel Carrère & Hervé, livro O Reino;

- Vivian Gornick & Leonard, livro The Odd Woman and the City.

Fiquei deslumbrada com as características que Carrère destaca a respeito do amigo Hervé: não era irônico nem maledicente, não praticava o mal, não se preocupava com o efeito que produzia, não jogava nenhum jogo social." (> que bálsamo.) Carrère sentia que a convivência com o amigo não era estúpida nem exaustiva feito aquela dos mundinhos do jornalismo e editorial francês ao qual estava habituado. Também adorei quando o autor comenta que Hervé fazia parte da família de pessoas para quem existir não era óbvio. Porém o mais legal dessa amizade, achei, é isto aqui: na publicação do livro, fazia 23 anos que os dois se encontravam, toda primavera e outono, na aldeia francesa Levron; período durante o qual caminham longamente. Carrère garante que Levron e a amizade com Hervé são os lugares para onde vai inquieto, e de onde volta resserenado. Carrére descrevendo a amizade:
"É uma amizade íntima: agora mesmo eu escrevia que, como todo mundo, Hervé tem seus segredos, mas acho que não os tem para mim, e o que me faz pensar isso é que não os tenho para ele. nada é vergonhoso a ponto de eu não poder lhe contar sem sentir um pingo de vergonha: pode parecer inacreditável dizer isso, mas sei que é verdade. É uma amizade serena, que não conheceu crise nem eclipse e que se desenvolveu ao abrigo de toda interferência social."

                                                           - Emmanuel Carrère; O Reino. (Tradução: André Telles) 

Já no texto de Vivian Gornick, os paradoxos presentes nas grandes amizades ganham um espacinho. Ela e Leonard também contam com mais de duas décadas de amizade, sempre se encontrando uma vez por semana para caminhar, jantar, assistir a um filme. A autora diz que eles não fazem nada exceto ter ótimas conversas; admitindo que a atração mútua resulta do efeito positivo que suas conversas exercem no modo com que enxergam a si próprios, ou seja (e ainda parafraseando Gornick:), a autoimagem projetada no amigo os engrandece. Se o convívio é tão prazeroso, eles deveriam se ver com maior frequência, não? Pois aí que está. Gornick explica que os dois são um tanto negativos, pessoas para quem o copo está sempre metade vazio, de modo que estar com Leonard força Gornick a confrontar sua própria voz, a faz relembrar o quanto ela própria é julgadora, uma mulher que sempre repara nas falhas, nas ausências, nas incompletudes. (exato, igualzinha a mim, reparando nas falhas da nova casa; vai vendo.)

Pelejo para desvendar o segredo dessas amizades preciosas, entretanto é difícil. Carrere e Hervé são totalmente diferentes, enquanto Gornick e Leonard representam imagens especulares, portanto a mágica não parece estar nas semelhanças ou diferenças compartilhadas. A consistência de encontros regulares, com intervalos espaçados, por seu turno, chama atenção, apontando para o suposto caminho das pedras. Sobretudo neste aniversário histórico, não posso evitar de pensar como seria ter uma amizade similar a desses dois autores. Talvez a situação esteja menos dura para quem dispõe do tipo de enlevo propiciado por profundas amizades. 


🔊 Quase esqueci das famigeradas mensagens de trabalho no whatsapp. Veja, nesta altura do campeonato, creio que todos colegas trabalhadores já estão cientes de que nos lascamos, confere? Por razões de naturezas distintas, o raciocínio procede tanto para quem está em casa, quanto para quem infelizmente não pode se proteger dessa forma. Aos desempregados - e aqui reside a grande crueldade da situação - procede ainda mais. A ingênua do passado: poxa, seria tão bacana trabalhar em casa, tão legal, tão cômodo... A lascada do presente: eita, quase nove horas de trabalho ininterrupto, e  não consegui entregar essa maldita meta estrambólica justificada pelo fato de estar em casa. e o chefe ainda manda mensagem "parabéns pelo dia das mulheres" às 06h da manhã. Kafka, me ajuda!" Nos momentos em que me afobo para dar conta da meta, lembro das belas e inspiradoras palavras ditas ano passado pelo atual chefe do Poder Executivo: "O homem do campo é um exemplo, realmente, de trabalhador brasileiro. Eles trabalham de segunda a domingo, por vezes, 24 horas por dia, e não reclamam de absolutamente nada. A não ser, às vezes, quando o Estado quer interferir no seu trabalho." Ele tem razão, né? Não trabalho no campo, entretanto, quando o Estado vem se meter à besta pra garantir uns direitos pra minha classe, é super chato; nada a ver. Desconfio que o nobre orador, que professou ideias tão acertadas, compartilha daquela mesma opinião do capataz alemão da Sinhá do livro Água Funda, de Ruth Guimarães:"- Fôsses, brrasileirras, non serrfem parra trrabalharrr." A mexicana Elena Garro está ligada na importância do trabalho. No excelente As Lembranças do Porvir (Tradução: Iara Tizzot), outro aparente amigo íntimo do nosso chefe do Executivo inventa de falar pro general que, do que o país precisava, era de alguém que fizesse o povo trabalhar. O general, que sequer estava de bom humor, vociferou esta sagacidade: "Pois é bom saber. Deixe de discursinhos e ponha-se a trabalhar! Pando, traga-me uma vassoura, que o companheiro aqui quer trabalhar. Varra a cantina." Depois que o cara termina de varrer o recinto, ele sai para o banheiro com os olhos cheios de lágrimas, o que claramente demonstra a gratidão que sentia pelo sublime general. Lindo de ler, aprendi muito.


🔊 Chega, né? Queria falar de outros livros, mas fica pra depois.

E lembrando: não escuto um barulhinho bom ao abrir as janelas, é verdade; porém nada que o YouTube não possa "resolver", certo? Certo, né?
"-Vou à Penha agradecer o quê, Nascimento? Estar aleijado, falido, (...)
-Você está vivo, Gattai! Acha pouco?"

                                         - Zélia Gattai, Anarquistas, Graças a Deus. 



13/09/2020

[alinhavando] Maybe all I need is a shot in the arm

01
No vídeo em que apresenta sua biblioteca para o canal Les Inrockuptibles (link aqui: X), Leila Slïmani compartilha uma singela história que marca a relação dela com Anna Karênina, de Tolstói, e com a própria literatura. A autora relembra ter sentido muita raiva ao ser chamada pro jantar por sua mãe; quando, no quarto, ela lia a página <SPOILER> em que era narrado o suicídio da personagem Anna Karênina. Slïmani explica que sua revolta decorria do fato de que, para ela, era inadmissível pensar em tais trivialidades - jantar?!-, quando Anna Karênina simplesmente acabara de morrer.

Durante este período de medidas de isolamento e distanciamento sociais, vivi algo similar ao relatado por Slïmani. Quando dei por mim, me peguei preocupada com as Irmãs Makioka (! - personagens do livro de Junichiro Tanizaki), consumida pelas seguintes reflexões e aflições: mas e quanto à visita anual das irmãs às cerejeiras do jardim sagrado no templo Heian, em Kyoto, no mês de abril?! E a tradicional foto das quatro debaixo da cerejeira localizada à beira do lago Hirosawa, com a montanha Henjoji ao fundo?! Não vai rolar?! Ah, não! Puxa vida, como estará Sachiko? Que pena. De início, me senti meio abestalhada, temerosa de ter virado uma Dona Quixote, entretanto lembrei das palavras de Slïmani e sosseguei — Leila Slimani: "Foi quando, pela primeira vez na vida, percebi que as pessoas não se dão conta da importância da literatura. Eu estava completamente alheia às trivialidades da vida." 

Com a leitura de Os Judeus e as Palavras, também encontrei conforto no trecho em que Amós Oz e Fania Oz-Salzberger comentam que pouco importa se as personagens bíblicas, por exemplo, existiram ou não, porque todas vieram da vida real, vieram de linhas de textos cujas ideias transmitidas existiram e ainda existem. "Como leitores, sabemos que a ficção transmite verdades". Quer dizer, será que, neste exato momento, não há uma família japonesa desolada porque se viu impedida, pela pandemia, de seguir sua tradição de visitar as cerejeiras em flor? Pois meu pensamento está com essa(s) família(s). Por sinal, o último conto que li de Borges (Emma Zunz) igualmente tocou nesse assunto (≅ os detalhes das histórias são ficcionais, enquanto os sentimentos...), mas este é tema da próxima postagem da série de leitura de O Aleph.

02
Suponho que uma das coisas que torna momentos como este verdadeiramente difíceis é termos pessoas em nossas vidas com as quais nos importamos plenamente, não? O tal, digamos, "Sustentável (mas a que custo, meu deus!) Peso do Ser". Esse desvario cafona me ocorreu em resposta a uma cena tragicômica do belo filme Starlet (Uma Estranha Amizade; 2012), do diretor Sean Baker. A obra narra a gradativa amizade que se estabelece entre duas mulheres solitárias da Califórnia, uma jovem e uma idosa. A senhorinha resiste rabugenta às investidas persistentes da garota, sobretudo avessa ao cachorrinho que era carregado a tiracolo pra todo lado, tratado praticamente feito bebê. Quando as duas estão um tanto mais próximas, a jovem pede que a senhorinha fique de babá do cachorro, enquanto ela trabalha. O experimento não dá muito certo, pois o cão foge e a pobre senhora, totalmente exasperada, gasta horas procurando-o pelas ruas do bairro. Não demora, e logo o filme faz o que filmes fazem melhor; digo, entrega a famigerada imagem que fala por mil palavras:
↥ Aos prantos, ela cambaleia desolada no meio da rua. A edição do filme é massa, visto que, desse ponto, corta diretaço para a senhora devolvendo o cachorro à moça, ao mesmo tempo em que ordena-lhe, sem qualquer explicação, que desapareça pra sempre e que não a aporrinhe mais os pacovás. 

E não é assim? Assim é.

03
Os meses de março e abril, em particular, foram marcados por suadeira nas mãos, angústia opressora e contínua leitura de artigos sobre a doença, tendo as notícias da Globonews como trilha sonora. Graças a essa rotina, acredito ter conseguido capturar uma imagem da melhor biblioteca de jornalista dentre aquelas que têm aparecido durante as atuais transmissões de TV. Falo do escritório/biblioteca de Miriam Leitão, antes do suposto upgrade:

04
Boa musiquinha para a presente realidade, esta do Caribou (*sample da música Home, de Gloria Barnes; 1971). Saca o refrão em loop eterno:

She's going home
Baby, I'm home, I'm home, I'm home

(*Aliás, pera, canção das privilegiadas..., não é? Ontem, loser; hoje, privilegiada. So it goes.)

05
(Dado que o tema é casa:) No começo do ano, eu estava em busca de um novo apartamento pra morar (caçada interrompida pela pandemia, claro) e, além dos requisitos óbvios (preço ok, dispensa de reformas etc), eu só fazia questão de uma coisinha: VARANDA. E pra quê, né? A real é que não se constroem mais varandas e, quando o fazem, a família classe média brasileira vai lá e taca-lhe uma janela pra fechar tudo, integrando a p* toda à sala. Eu vejo as fotos nos sites de imóveis e quero morrer. Quando tomada pelo espírito meio bastante porco do "há males que vêm pra bem", ouso trepidante conjecturar que, com alguma sorte, esse vírus fará a turma dar a devida importância às varandas. Quem envidraçou e tijolou sua varanda, não pôde postar, nas redes sociais, vídeos de cantoria e festinhas nesses espaços, não é meixmo? Bem feito. É peculiar, esse habitual anseio do brasileiro de separar-se a qualquer custo do mundo exterior, de ampliar e definir precisamente os limites do seu espaço privado. 

Frustrada com a realidade imobiliária, não pude evitar que meus olhos marejassem diante deste inesperado poema da portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen:

Varandas

É na varanda que os poemas emergem
Quando se azula o rio e brilha
O verde-escuro do cipreste — quando
Sobre as águas se recorta a branca escultura
Quasi oriental quasi marinha
Da torre aérea e branca
E a manhã toda aberta
Se torna irisada e divina
E sobre a página do caderno o poema se alinha

Noutra varanda assim num Setembro de outrora
Que em mil estátuas e roxo azul se prolongava
Amei a vida como coisa sagrada
E a juventude me foi eternidade
 — Sophia de Mello Breyner Andresen

Não posso contar com arquitetos, engenheiros e imobiliárias; porém ainda posso contar com os poetas.

06
Por falar em poesia, 
a mesa de bar, tema é,
no Slam da Pandemia.
Dr. Fauci ou Carioca do Leblon?
Água ou Chandon?
Garçom, sobe o som!
                 — Daniela

Durante uma das trilhas que fiz numa viagem do ano passado (contei aqui: X), um moço do grupo se destacou por seu desconsolado praguejo: - Puta merda, tanta praia bonita pra tomar uma cerveja gelada, e eu aqui nesse perrengue. A fala dele não só alimentou ainda mais minha crise de riso provocada pela inusitada situação em que me encontrava (botando os bofes pra fora, cercada pela natureza inebriante), como também despertou certo desalento embalado por aquela assombrosa pergunta de Esperando Godot, do Beckett: We always find something, eh Didi, to give us the impression we exist? (Nós sempre achamos alguma coisa, hein Didi, para nos dar a impressão de que existimos?) Por que esse something é, pra tanta gente, o álcool? Isso me deixa destrambelhada, admito com não pouco embaraço. Ora, lá estávamos nós cercados pela, como disse deliberadamente, natureza inebriante, e mesmo assim não era suficiente. Toda aquela beleza articulada com o esforço do corpo não bastava para que o moço se convencesse de que ele estava vivendo amarradão. Não entendo; e simultaneamente estou ciente de que (1) minha reação é despropositada e (2) não tenho direito de julgar. Que as pessoas tenham encontrado um something, já é motivo para se contentar, de fato. Acho. Ou será que o álcool, na real, somente faz as pessoas esquecerem que estão à procura de um something? Caí num pleonasmo? Que confuso. Ah, e sim, meu lugar de fala é o da pessoa que não bebe. Quer dizer, curto um vinhozinho com uns queijos espertos talecoisa (#pequeno-burguesa), sabe como é, contudo a parada, pra mim, se encerra aí. Chata muito? Opa, provavelmente; mas como hoje estou disposta a ser gentil comigo mesma, argumento que apenas prefiro ficar bêbada mediante outros meios — e não; não tô falando de remedinhos.

The Hills erect their purple heads,
The Rivers lean to see
Yet Man has not, of all the throng,
A curiosity.
— Emily Dickinson

Em meio a esse conflito alcoólico, os filmes do Sang-soo Hong, que andei vendo nestes dias, só pioraram minha desorientação. Em todas as obras desse cineasta sul-coreano a que assisti, o álcool se faz presente de um modo determinante que, a princípio, me desconcerta. Em linhas gerais, a entrada do álcool nas narrativas dele serve para desarmar as inibidas e formais personagens que, então, finalmente desembucham o que de fato estão sentindo. Ou seja, o esforço exigido pela rígida performance social é posto de lado e os nós desatam quando a galera de Hong começa a encher a cara. Pô, só eu® fico meio deprimida diante dessa dependência humana? Busquei no google artigos/críticas/análises acerca dessa presença do álcool nos filmes do cara, mas não localizei nada legal. No entanto, a entrevista que ele concedeu ao site Sofilm me ofereceu respostas valiosas, algumas das quais listo a seguir (grifos são meus):

Q- Como começou a beber? R- Eu tinha 15 ou 16 anos. Cerca de 10% dos meus colegas de turma bebiam nessa idade, (...) Os meus amigos tinham problemas familiares, todos eles. Assim, quase todos os dias, depois das aulas, nos encontrávamos para beber juntos. (...) Bebíamos muito. Realmente, muito.

↦ Q- Por que bebia tanto? R- (...) Eu estava... (longo silêncio) solitário. Eu era muito reservado. Não tinha amigos fora do meu gangue alcoólico. (...) Eu estava muito desorientado, sem objetivos ou planos para a vida. (...) Eu não sonhava com nada. Esse período de alcoolismo brutal durou dois anos (...) entre os 15 e os 17 anos. Depois comecei a beber menos, mas ainda não tinha nenhum objetivo! (...) Só queria esquecer.

↦ Q- Gostava de ler e escrever? R- Sabe, beber é algo tão poderoso, que apaga qualquer relação que se possa ter com qualquer outra coisa, apaga toda a sua energia. Mas no fundo, me senti dividido entre essas duas experiências: beber e escrever. Embora não pudesse escrever com frequência, estava sempre interessado em livros.

↦ Q- Quando bebe com os seus amigos, de que falam? R-  (...) o que faço é propor um jogo alcoólico para entornar todas. Se o jogo durar uma hora, todos acabam bêbados e não há mais necessidade de falar. Nos sentimos próximos, nos amamos, e não há necessidade de dizer bobagens pelas quais se arrepender no dia seguinte.

Q- No entanto, nos seus filmes, esses momentos frequentemente levam a situações embaraçosas, em que as pessoas falam demais. R- Sim, mas na minha vida isso só acontece quando bebo toda a noite, conversando até o amanhecer. É aí que se acaba fazendo besteira. E nem sequer é sincero, são bobagens que não se ancoram na realidade; um produto do cérebro fora de si. É por isso que eu gosto de jogos, porque não lhe dão tempo para falar. Tudo o que permitem é se embebedar, se sentir bem com as pessoas e ir para casa feliz.

↦ Q-  Então, costuma beber com os seus alunos? R- Tento evitar. (..) gastei tanta energia com eles! As conversas nunca acabam! Não suporto. Estão ansiosos por tudo, durante todo o dia, têm muitas perguntas sobre a vida.


Minha hipótese do álcool servir para promover o esquecimento da pergunta formulada pela peça de Beckett parece ter sido corroborada pelas respostas de Sang-soo. Interessante. E o que ele menciona a respeito da enorme capacidade do álcool de bloquear qualquer relação que possamos ter com outras coisas na vida me tocou em especial, pois parece ser o cerne do que me inquieta na relação firmada por muitos com essa droga. A sensação é que, para realmente diversas pessoas, nenhuma ocasião será de efetiva celebração feliz com o outro, a menos que envolva bebida alcoólica. Por que sentem-se (creio) desse jeito? Também preciosa é a opinião dele de que o álcool não desperta a expressão de nenhuma verdade interior do indivíduo, mas apenas um monte de idiotices. Gosto disso, sobretudo porque desmonta a leitura que fiz de seus filmes. E, claro, para quem aprecia demais o silêncio, torna-se mais fácil entender a enorme valoração social do álcool, a partir do momento em que Sang-soo me diz que o que ele busca com a bebida é a possibilidade de não falar nada e ser feliz com os amigos de que gosta. Um brinde a isso, senhor Sang-soo.

Que dei meus últimos tostões
Por esse vinho, estão lembrados?
E seus eflúvios inspirados
Geraram tolas percepções,
Mas também verve e poesia,
E discussões, sonho, alegria!
— Alexandr Pushkin; Eugênio Oneguin 
    (Tradutor: Dário M. C. Alves)

O livro de Montaigne afinal saiu da estante, e, ao espiar o índice, tive a alegria de dar de cara com um ensaio intitulado Sobre a embriaguez. Bom, eis que saí da leitura com um aliado e tanto, pois não é que o grande ensaísta meio que concorda comigo?! Rá!, tomem essa, bebuns dos infernos. Montaigne considera a embriaguez um vício grosseiro e brutal, que destrói e entorpece o corpo. No ensaio dele, porém, consta uma lista de causos históricos que contradizem o cineasta Sang-soo Hong no que diz respeito à eficácia do álcool em fazer a turma da mesa de bar vomitar seus segredos mais íntimos. Vale ressaltar que, para Montaigne, é importante reconhecer que uns vícios são piores que outros e, nesse sentido, embora covarde e estúpido, o álcool não seria o pior e mais prejudicial à sociedade. < Aqui, admito que discordamos, porém deixo esse debate para outra ocasião. Fora que o cara fala do contexto social do século XVI; é bom lembrar. > Para não me restringir a um tolo ataque ao álcool (sequer é minha intenção), acrescento o que, segundo Montaigne, Platão afirmara acerca da embriaguez: "(...) a embriaguez é uma prova boa e segura da natureza de cada um, ao mesmo tempo que é capaz de dar às pessoas de idade a coragem de se divertirem em danças e na música, coisas úteis e que não ousam empreender em estado normal". Claro que tem seu valor, portanto. Mas tem uma pegadinha: na cartilha platônica, a bebida está liberada só após os quarenta anos. É, já suspeito quais seriam as reflexões de Platão sobre a bebedeira nos filmes do Sang-soo, sobretudo se ele fosse informado de que o cineasta começou a entornar garrafas de soju aos quinze anos. 

Emet
(...)
Eu sei, também tenho ido a bares e outros lugares
igualmente reais. E tenho tido
uma vida ou mais. Mas é tempo de falares
tu, livro. Eu tenho dito.
— Manuel António Pina

Sensação de que paguei de chatonilda ao abordar esse tema; e o pior é que nem precisava, uma vez que tudo que tentei concatenar aqui a respeito do álcool já foi dito de forma muito mais divertida pelos senhores Robert Eggers e Max Eggers, no filme O Farol (2019).

- Boredom makes men to villains, and the water goes quick, lad, vanished. The only med'cine is drink. Keeps them sailors happy, keeps 'em agreeable, keeps 'em calm, keeps 'em...
- Stupid.
- Curse me if there ain't an old tar spirit.

Mas assim, né?; não trabalhamos com intransigências, veja bem. Pra que essa besteira? Tipo, se este cara aí 👇 me chamasse pro bar, eu negaria? A resposta é: claro que não. Me liga, Lenny Bruce

"(...) Samuel Johnson, tarde da noite, quando saía à procura de conversa de 
taberna, experimentava o alívio de ver suas próprias necessidades refletidas 
na companhia que encontrava: aqueles que bebiam e falavam do Homem e de Deus 
até que a luz despontasse, porque também nenhum deles queria ir para casa."
                                                                          - Vivian Gornick, The odd woman and the city

07
Uma de minhas grandes recentes descobertas (não foi a vacina, desculpa) foi constatar que, quando o assunto é cagar em locais públicos — sim, neste blog, basta um toque na barra de rolagem, e passamos do álcool à caganeira ¯\_(ツ)_/¯ —, o mundo conta com dois tipos de roteirista de série de TV. Esta, sim, uma escolha difícil. Ladies and Gentlemen, it's time for... THE POOP BATTLE!


De um lado, temos o querido fdp Larry David que, na S10 de Curb Your Enthusiasm (HBO), inventa abrir uma cafeteria cujos banheiros para o público não têm privadas. O mais novo empresário da Califórnia se recusa a ter de lidar com o cocô alheio em seu empreendimento. Ah, então o cliente quer cagar após o cafezinho? Pois vai ficar querendo; porque, no banheiro da cafeteria do Larry, não vai rolar.

Do outro lado, o querido entregador de maconha Ben Sinclair, na S04 de High Maintenance (HBO), nos apresenta a um pobre profissional de Mensagens ao Vivo (é esse o termo?) que, mega apertado enquanto trampa nas ruas de NY, é resgatado por uma cafeteria. O rapaz, ao sair aliviado do banheiro, agradece ao barista e se desculpa de ter defecado no sanitário do estabelecimento. A reação do barista? Abre um sorriso simpático, dizendo-lhe pra deixar de bobagem, porque está ciente do aperreio que é querer fazer cocô, quando se trabalha na rua. No universo de Sinclair, o cocô é livre.

E aí, quem leva o POOP TROPHY? Meu eu constipado que trava-me o esfíncter retal tão logo ponho os pés fora de casa fica com o Larry David; enquanto meu eu consciente de que um intestino saudável requer alívio imediato onde quer que se esteja e que, para isso, é importante ajudarmos uns aos outros, fica com o Ben Sinclair. Complicado.

Pra que escolher um, né? Amo esses dois cagões.

08
E pensar que, no começo do ano, eu estava aqui desejando bastante transa pra todo mundo, hein? How the turntables...

24/08/2019

[autoficções] #03

📓 Enquanto isso, nos Stories da Florence Welch:



- Olha só, Liam Gallagher!, ao contrário do Noel, a Florence "can handle rock 'n roll"! 










📓 Situação real que testemunhei: em uma ampla via com pesado tráfego de carros, um jovem da geração sem tempo, irmão arrisca atravessá-la enquanto o sinal encontra-se vermelho para pedestres. Simultaneamente, escuto o comentário de um senhor idoso à minha esquerda:

- A vida é tão boa; pra que arriscar? 

Com o sinal verde liberado, ele emenda: - Pronto, agora eu vou


📓 [Ainda lendo o livro Crônicas Completas:]
"Sei que a mudez, se não diz nada, pelo menos não mente, enquanto as palavras dizem o que não querem dizer."   
 - Clarice Lispector

Puxa, lembrei de uma das minhas músicas favoritas do White Stripes (saudades):
Truth Doesn't Make a Noise.

You try to tell her what to do
And all she does is stare at you
Her stare is louder than your voice
Because truth doesn't make a noise

[- Ah, Jack, o quanto essa música me ajudou. Nós dois acabamos seguindo por caminhos diferentes, contudo minha gratidão é eterna.]


📓 Pera, pera, pera. Mas então... eu virei aquilo que desdenhava: a pessoa que lança na internet citações aleatórias de Clarice Lispector?! NOOOOOOOOOO.


📓 Como sou teimosa, fui lá ver ANIMA, o curta que Thom Yorke lançou em parceria com Paul Thomas Anderson. Gostei bem mais do que eu tinha antecipado e registro três breves reações:

- Nunca imaginei que veria, com esses olhos que a terra comerá, Thom protagonizando ceninhas fofas e românticas. (Ok, o clipe de Knives Out chegou perto, mas nem se compara.) Mentira, imaginei sim. No caso, imaginei em meus sonhos, nos quais, é claro, euzinha sou a protagonista, e não aquela lá. Humpf. (Brincadeira, desejo felicidades aos dois. Ou não.)

- Não adianta; eu escuto esses trabalhos solo do Yorke e sinto vontade de incorporar o panda irado no estúdio dele, destruindo toda a parafernália eletrônica. Melhor: bancar a Annie Wilkes, do livro Misery (King), sequestrando-o e mantendo-o em um cativeiro onde ele só teria um piano e um violão acústico para compor músicas. #paz

- E quanto mais ouço a onda solo do Yorke, mais valorizo a presença do Jonny no Radiohead.                  Louvado seja.


📓 Nas crônicas, Lispector recorrentemente aborda encontros com leitores (especialmente via cartas), e os relatos dela me fazem devanear uma porção de coisas. Por exemplo, ela tem reforçado minha teoria de que é impossível travar contato com um ídolo sem bancar a completa idiota. E a experiência de Lispector me faz crer que esses encontros sejam marcados por um certo embate:

- De um lado, o fã iludido pela certeza de já ter desvendado todo o mundo interior do ídolo artista. Graças à profunda conexão estabelecida com a obra da pessoa admirada, o fã se considera super íntimo, um quase amigo de infância. 

- Do outro, o artista ressabiado que não poupa esforços em ressaltar que o fã está completamente equivocado ao supor que o conhece; demonstrando um quase pânico diante da possibilidade de estar desnudo na própria obra.

Na prática, talvez a realidade corresponda a uma média ponderada desses dois lados. Vai saber.


📓 [Continuando nos encontros da Lispector:] Ela convida leitores para tomar café, dá livros autografados de presente, abre a porta de casa para aqueles que tocam sua campainha. É realmente admirável. Recordei de quem? Claro, daquele que nunca some dessas bandas: Thomas Mann. Ora, imagine que uma Sontag de 13-14 anos (mais um amigo) liga para a casa do grande escritor alemão que, não apenas atende o telefone, como também os convida para um chá da tarde em sua casa. Que me perdoem os contemporâneos, mas fica difícil não atentar que hoje rola no máximo um like de um escritor nas redes sociais (ou aporrinhação, por causa de crítica negativa). Bom; cada tempo, um tempo. E o nosso é o tempo do sem tempo, irmão.


📓 Bora de mais Lispector? Deparei-me com isto aqui:
"(...) escrever sobre a vida e você mesmo, o que significaria a mesma coisa."

O monólogo interior no qual embarquei ao fim dessa frase foi este: Ok, faz sentido. Já que só posso falar sobre a vida a partir da minha própria experiência, falar de mim = falar da vida. E olhe lá. Porém... Eu posso tentar me colocar na posição de um outro, o que significaria adentrar o campo da imaginação. Imaginar outras experiências. O universo da ficção. (...) Ficção ainda é a vida? Se a ficção que crio faz parte de quem sou (?), escrever ficção pura é sempre escrever sobre a vida. É?

Conclusão? Exato: bela groselha de platitudes. (#pleonasmei?)


📓 A reflexão "literatura  x  vida" encontrada no diário do Piglia demonstra (?) que a Lispector não me fez devanear tanta abobrinha assim, hein. O argentino mandou esta:
"(...) é preciso ver de que lado se coloca o sinal positivo: ver a literatura a partir da vida é considerá-la um mundo fechado e sem ar; ao contrário, ver a vida a partir da literatura permite perceber o caos da experiência e a carência de uma forma e um sentido que permita suportar a vida."
                                                         - Ricardo Piglia; Os Diários de Emilio Renzi (tradutor: Sergio Molina) 

Isso me faz pensar que, para encerrar qualquer desvario, basta tacar um "é relativo" e pronto; imbróglio sanado.


📓 Finalmente cedi a outro hype: Russian Doll. Curti demais os primeiros episódios (que escrita afiada!), mas o final... Sei lá; preferiria algo menos embrulhadinho pra presente, talvez. 

O lance dos espelhos x morte recuperou da memória um quadro discutido por Manguel no Lendo as Imagens. Este aqui, o Mosaico da Batalha de Isso:

Circulei toscamente a potente imagem que mais me interessa, acerca da qual Manguel escreve:
"É um soldado persa; (...) caiu entre as espadas  e lanças espalhadas; seu último gesto é levantar o escudo para ver, nessa superfície de espelho, a sua própria face. Esse soldado deseja saber quem é, antes de morrer.
Quando penso nesse tema associadamente ao período em que o quadro foi concebido, fico destrambelhada. É extraordinário.

 
📓 Acredito que logo mais terei de me despedir definitivamente do Godard, pois nossos santos não se bicam. Dessa vez fui de Masculin, Féminin e, bem, até gostei mais desse, porém... Ai, nem sei explicar direito porque a obra dele não me desce. Tentarei só mais um e, se não rolar, será adeus. Se não consigo ser cool, paciência.

[- Eduardo, comer hambúrguer na lanchonete é muito mais legal do que ver um filme do Godard. A Mônica não sabe de nada.]


📓 Por incrível que pareça, nunca vi ou li a história do Pinóquio. Quando criança, possivelmente assisti àquele clássico desenho da Disney; no entanto, se de fato vi, a memória tratou de deletar. Enfim; toco no assunto porque essa narrativa cruzou meu caminho por duas maneiras surpreendentes. No Narrativas, podcast da Carambaia, Renato Moricone compartilhou que seu filho parecia recorrer ao desenho do Pinóquio, especificamente ao momento em que o protagonista está dentro da baleia, para conseguir assimilar a concepção de que logo mais um irmãozinho sairia de dentro da barriga da mãe. Depois, na The Red Hand Files #51, newsletter de Nick Cave, um pai que perdera o filho pergunta se estaria fadado a permanecer dentro da baleia, agora que seu Pinóquio estava morto. Em um mesmo trecho de uma narrativa, espectadores/leitores identificam caminhos para assimilar tanto a vida, quanto a morte. É isso o que torna uma história grandiosa, não? Logicamente o livro foi pra minha pilha de leitura.


📓 Vagão do metrô. À minha direita, a moça lê A sutil arte de ligar o f*da-se. À esquerda, outra se entretém com o Seja Foda. No Instagram, descubro o lançamento do Liberdade, Felicidade & F*da-se. Hum... É, talvez eu deva repensar meu branding; reposicionar minha marca tal.e.coisa. Será? Vejamos... F*dendo entre livros? Eita! Haha, não, calma. Entre livros fodas? F*da-se entre livros? Xi. Seja f*da entre livros? Nhé.

Posteriormente, na série Years and Years, meu queixo caiu com o nome do partido da personagem da Emma Thompson, a política que era contra tudo que estava ali: quatro estrelas ↦ **** = F*CK. Coincidência? Fica a questão.

(Náh, o bobo nome do bloguinho permanece como está.)


📓 Por falar em Years and Years: aparentemente, o capitalismo tardio ressignificou maleficamente as bicicletas? O que representava infância, liberdade, brincadeiras lúdicas e sustentabilidade, tornou-se o grande símbolo do trabalho precarizado. Poxa, dia desses me emocionei pateticamente ao contar para uma amiga o último episódio da S03 de High Maintenance, aquele em que dois amigos da época de escola se reencontram em condições tristes (o filhinho de um deles submetia-se a tratamento oncológico) e, para um breve respiro, os dois passeiam de bicicleta pelas ruas de NY. Depois, com Years & Years, vi a bicicleta do trabalhador matar pedestres na rua, ao mesmo tempo em que representava a salvação financeira do moço de classe média que perdeu, em um piscar de olhos, mais de um milhão de libras. Que maluquice. Se eu continuar me emocionando por aí com historinhas de bicicletas, serei acusada de privilegiada. Com razão? 

Pensando melhor, só agora me dei conta dos motivos pelos quais o filme Ladrões de Bicicleta é um tremendo clássico; mais atual do que eu jamais havia suposto até agora.


📓 Encontrei no filme O Medo Consome a Alma uma cena maravilhosa que reforça uma bobeira incluída no autoficções #02: roupas podem (e devem) ser usadas para construir/apresentar uma personagem.

No começo da obra de Fassbinder, quando Emmi entra no bar frequentado por imigrantes, ela está molhada pela chuva, tem cabelos grisalhos e veste um casaco monocolor escuro. Daí, quando o belo e jovem marroquino a convida pra dançar, e ela tira o caso, calcule o susto que eu e o moço tomamos quando demos de cara com isto:


Poxa, somente com esse jogo de roupas, o Fassbinder conseguiu nos apresentar um mundo inteiro a respeito de Emmi. Joinha para o diretor e equipe.









 
📓 Novamente falarei do mar, pois outras pontes marítimas foram construídas neste mês. A maré começou com o filme da Claire Denis, o 35 Doses de Rum. Especificamente, aqui:

Medo de um mar no qual, quando se grita, ninguém escuta. A fala da personagem de Denis catapultou de volta uma passagem do livro Ruído Branco, na qual a personagem de Don DeLillo argumenta que, quando morrem, os seres humanos gritam para que sejam percebidos, lembrados por um ou dois segundos. Ao somar Denis + DeLillo = o mar escancara nossa insignificância e mortalidade; o medo do mar reflete o medo da morte.

Lendo posteriormente o As palavras não são deste mundo, do Hugo Von Hofmannsthal, esbarrei justamente com essa ideia. Eis a versão mais articulada do senhor Hofmannsthal:
"Assim que vi o mar, compreendi ter envelhecido. (..) Quando (...) já pode ver o mar, (...) sente-se a si mesmo muito claramente, mas com um ar um tanto insólito e rarefeito. Perdem-se muitas coisas que se imaginava possuir: a gente fica mais leve e vazio, é inquietante. (...) diante do mar, tudo que é estático está atrás de nós, para ser deixado para trás, e diante dos olhos nada temos além da existência infinita, algo que não somos capazes de compreender totalmente."
                             -  Hugo Von Hofmannsthal; As palavras não são deste mundo. (Tradutor: Flávio Quintale)

Resgatarei o filme do Godard, ou melhor, a cena em que a personagem de Chantal Goya pergunta à personagem do Léaud o que ele considera o centro do mundo. Ele diz que é o amor, ela diz que é ela própria. Antes das respostas dos dois, respondi na lata "o mar". Na ocasião, ignorei o motivo da minha resposta; entretanto agora ganhei argumentos para, ao menos, balbuciar um arremedo de justificativa.

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Retornando à Claire Denis (por sinal, que cineasta fabulosa!), arrisco associá-la àquele alinhavo feito entre Lispector e White Stripes concernente ao tema a mudez não mente/a verdade não faz barulho. Só vi dois filmes dela (o outro foi o atualíssimo Beau Travail), e a presença do silêncio em ambos foi marcante. Agrada-me demais como Denis conduz sua narrativa, sustendo-a menos em diálogos, e mais nos pequenos gestos, olhares e na relação que as personagens estabelecem entre si e, principalmente, com o espaço/cenário/paisagem que ocupam. São filmes cujo silêncio reverbera longa e ruidosamente. Ah!, quase me esqueci do outro elemento crucial que me fisgou nos dois filmes dela que vi: a dança aparece como instante de ruptura para as personagens. Sabe das coisas, essa Denis.


📓 Infelizmente, não me apaixonei pelos poemas de Akhmátova (minhas expectativas eram super altas), porém faço uma colagem de alguns versos soltos que me marcaram bastante. O engraçado é que suponho que sejam os que menos refletem aquilo que acadêmicos consideram o ápice da obra da poeta russa. (Tradutor: Lauro Machado Coelho)


📓 Voltei à Netflix por culpa do Thom Yorke e, na busca por algo que me convencesse a permanecer por lá, dei de cara com Shtisel, uma espécie de novelinha "das seis" israelense, sobre judeus ortodoxos. O roteiro segue a linha "nada acontece" e, exatamente por isso, tudo acontece. A vida desenrola-se com suas complicações e delicadezas diárias (sobretudo quando fé/religião está envolvida). É linda. Ah, e o mais surpreendente: muito engraçada! <3

Colarei a imagem da Ruchami Weiss destruindo o teclado do computador, obrigada a exercer o papel que o pai bunda mole não dá conta, com uma caneta na boca fazendo as vezes de cigarro. A garota curte Middlemarch (<3) e lê para os irmãozinhos, à noite, uma versão adaptada do Anna Karenina. Fazia tempo que não me apaixonava assim por uma personagem. E parabenizo Shira Haas, atriz que a interpreta.


📓 Frases icônicas (pra mim) de Shtisel (transcrição aproximada):

"- (Quanto a lotéricas:) Aqui é praticamente uma filial do muro das lamentações."

"- Quer fazer Deus rir? Conte-lhe seus planos."

"- Quanto deu todo esse glutamato monossódico?"

"- Eu já comi.
- Eu também.
- Ótimo, vamos alugar a cozinha então."


- "Fuma e come." [→ Essa pede contexto. Imagine ter sua identidade reduzida por um outro
                          simplesmente a estas duas palavras: fuma e come. Elevado potencial para fazer                                        alguém embarcar  em uma crise existencial. Pior que a minha descrição nem estaria                                  tão longe, pois seria o batido "come e dorme."]

- "Sempre tem jornal." [→ a melhor de todas]

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Ainda rolou um diálogo que aborda aquele meu prévio devaneio acerca da relação "literatura (arte) & vida", instigado pela Lispector:

- É uma pintura, pai, não é vida real.
- Kive, quando vai entender? Tudo é vida! Tudo é vida, e o que fazemos com ela.


E mais outro com as reflexões desse mês relacionadas ao mar!↷

"Sempre a mesma água fedorenta com espuma"?! Os roteiristas de Shtisel estão corretíssimos: é preciso cautela ao lidar com uma pessoa que não vê graça no mar.
 

📓 Com a Pizarnik, pensei em personagens que pudessem ser companheiras de choro. Shtisel, a seguir, me fez pensar em quais personagens eu incluiria em minhas orações. Por quê? Porque a matriarca dos Shtisel reza pelas personagens da novelinha americana à qual assistia. Socorro.

Essa foi mais difícil. [Um século depois...] Certo, já que a série israelense me fez reviver Middlemarch, rezarei por Dorothea e Lydgate. E Ruchami, lógico.


📓 Estou lendo Oreo, livro que Fran Ross publicou na década de 70. Tenho me divertido descrevendo-o (mal) como uma singular mistura de Spike Lee + Irmãos Coen + Wes Anderson + Kurt Vonnegut. (Oh, yeah) Trata-se de uma nova versão para o mito de Teseu, na qual nossa heroína tem a "manha" de ser filha de uma negra e de um judeu, ambos americanos. Calcule só. Se bem que nem é preciso se preocupar com a Oreo, pois ela desenvolveu uma eficiente arte de autodefesa – o WIT - Way of the Intersticial Thrust –  e segue um moto em latim de responsa (bem melhor do que aquele manjadão da Margaret Atwood, hein): Nemo me impune lacessit. (+-: ninguém me provoca impunemente.)


📓 Depois de assistir ao adorável anime que aborda o complexo trabalho editorial envolvido na publicação de dicionários - The Great Passage - , sonhei que vivia em um mundo no qual era preciso pagar para usar as palavras, cada uma com um valor. Fiquei encantada diante da revelação de como meu inconsciente foi profundamente afetado pela singela narrativa japonesa. 
"O dicionário é um navio que nos permite navegar no mar de palavras."