Mostrando postagens com marcador livros. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador livros. Mostrar todas as postagens

22/12/2019

Lendo Contos| O Aleph - Jorge Luis Borges / biografia de tadeo isidoro cruz (1829-74)

 (Editora Companhia das Letras / Tradução: Davi Arrigucci Jr.)

A poeta Aline Aimée, do ótimo canal (no You Tube) Chave de Leitura, disponibilizou resenhas em vídeo para cada um dos contos da coletânea O Aleph, de Jorge Luis Borges (link aqui). Aproveitando a chance de poder contar com alguém para enriquecer minha experiência de leitura, tentarei incluir postagens em resposta aos vídeos da Aimée. Um clube de leitura formado por duas leitoras, maaaaais ou menos. A sequência proposta para o post é a seguinte:

Leio o conto > Escrevo e registro minhas impressões gerais  >
> Assisto ao respectivo vídeo da Aline Aimée > Complemento as impressões com as novas informações e reflexões.


** RISCO DE SPOILERS **


[Impressões pessoais após a leitura do conto:]

Na coletânea de diálogos entre Borges e Osvaldo Ferrari, me deparei com esta fala do autor argentino acerca de esquecimento criativo e memória criativa:
"Ou seja, é o mesmo conto e eu vou ensaiando variações. Mas, talvez, a literatura universal seja uma série de variações sobre o mesmo tema, (...)"
                                                                                                       - Jorge Luis Borges

Borges reconhece que, em sua obra, ele costuma repetir o mesmo conceito sob diferentes formas. É ele quem está falando, hein, não sou eu. Incluí o comentário porque tomo o conto biografia de tadeo isidoro cruz (BTIC) como uma variação de temas presentes nos contos anteriores de O Aleph, já lidos e comentados por mim no blog. Em BTIC, ressurge de forma mais pronunciada (deduzo) sobretudo a ideia de eventos que se repetem de modo circular e do duplo (Tadeo Isidoro x Martín Fierro). Visto que groselhei o suficiente a respeito dessas temáticas nas postagens anteriores, aproveitarei o ensejo muito mais para sondar intrepidamente certos pontos da narrativa que me conduziram a correlações algo estapafúrdias (os acadêmicos que fiquem com a parte chata 😁).

*
Suponho que esta passagem destaca-se como forte candidata ao papel de chave principal da leitura:
"Qualquer destino, por longo e complicado que seja, consta na realidade de um único momento: o momento em que o homem sabe para sempre quem é."
                                                                                                          - Jorge Luis Borges, BTIC.

Associando esse trecho à tríade* de principais e recorrentes questões borgianas conforme previamente comentada por Aimée, tendo a concluir que a noção de identidade é o foco de BTIC. (* = identidade, universo, tempo) Pra mim, pelo menos, é. Suspeito de que psicólogos e psicanalistas gozam um orgasmo literário (existe, né?) ao se depararem com a ousadia borgiana de afirmar que nossas histórias pessoais resumem-se simplesmente ao instante em que descobrimos quem somos. Isso deve apaziguar os ânimos daqueles que investem anos e anos de suas vidas em infinitas sessões de análise e terapia, no esforço hercúleo para descobrir quem são afinal. Se bem que o texto de Borges sinaliza que os livros, espie só, costumam guardar a solução desse grande enigma. Seria esse o próprio sentido da vida? Vai saber.

Em relação à ~vida real~, senti uma pitadinha de resistência para assimilar essa premissa de Borges; contudo, quando a extrapolei para a realidade ficcional, a apreensão de sua pertinência assentou de maneira mais fácil. Aproveitando que hoje não penso noutra coisa, senão no episódio IX de Star Wars, o último da nova trilogia (ele é tão ruim, que faz a curva e fica divertido), vale devanear que o único arco narrativo que me interessa no filme (= a díade da Força: Rey/Kylo Ben) se apoia fundamentalmente nesse ponto de BTIC; confere? Sinto-me tentada a teorizar que a essência de todas as grandes narrativas repousa em uma única fase da famigerada jornada do herói; aquela que, sozinha, basta para contar uma boa história: revelação e transformação. Uma particularidade um tanto paradoxal garante a diversão da teoria, dado que, nela, as personagens são confrontadas com suas verdadeiras identidades, a fim de transformarem-se naquilo que efetivamente já são (porém ainda não sabem etc). Transformar-se naquilo que se é... Que maluquice. Mas quem tem segurança para garantir que há incoerência nisso? Voltando a Star Wars: Kylo, após bendita epifania identitária ou, nas palavras de Borges, após o momento em que sabe para sempre quem é, abandona de vez o subterfúgio da máscara cafona e ~segue seu destino~. *Drama intensifies*

Também me peguei presa no emaranhado simbólico que essa chave interpretativa estabelece quando conectada à epígrafe escolhida por Borges para BTIC:

I'm looking for the face I had
Before the world was made.
- W. B. Yeats

Esses versos elevam a busca pela identidade a patamares ainda mais complexos, que me fascinam demais. A partir deles, conhecer a si mesmo apenas em termos psíquicos não mais garante contentamento. Com as palavras de Yeats, a parada alcança a metafísica, a transcendência; quiçá a cosmogonia! (haha) [Hum, A Paixão Segundo G.H. é uma narrativa que condensa essas duas chaves, não?]

Bom, essas duas chaves me trouxeram à memória o filme Os Olhos Sem Rosto (Les Yeux Sans Visage, Georges Franju - 1960), baseado no romance de Jean Redon. A metáfora encerrada na palavra "face", escolhida por Yeats (rimou?!), fez com que eu prontamente correlacionasse a descrição do instante de compreensão de Tadeu Isidoro Cruz àquele de Edna Grüber. Mesclando as duas narrativas (Borges + Redon/Franju), arrisco esta peripécia:
A moça, enquanto combatia na escuridão, começou a compreender. Compreendeu que um destino não é melhor que outro, mas que todo homem toda mulher deve acatar o que traz dentro de si. Compreendeu que as divisas e o uniforme o que as cirurgias e o confinamento a estorvavam. Compreendeu seu íntimo destino de lobo pássaro livre, não de cão gregário pássaro engaiolado; compreendeu que o outro era ele quem ela era, e que já tinha um rosto. 

[Anexo: enquanto lia, de boas, a coletânea de poemas da Sophia de Mello Breyner Andresen, esbarrei com uma estrofe que, com somente três linhas, resume todo meu lero-lero:
Assim bebi manhãs de nevoeiro
E deixei de estar viva e de ser eu
Em procura de um rosto que era o meu
O meu rosto secreto e verdadeiro.]

Por sinal, é curioso que essas compreensões ocorram durante a noite, e não de dia, via luz. Apelando ao Borges Babilônico (organização de Jorge Schwartz), percebi que a escolha parece amparar-se nas narrativas islâmicas; tendo sido lembrada de que "Entre os muçulmanos, a Noite do Poder (Laylat al-qadr) é a noite em que o Alcorão desceu do céu e se revelou a Maomé. Contam que, enquanto o Profeta do islã dormia em uma caverna no monte Hira, o anjo Gabriel o visitou e lhe disse que ele, Maomé, era o escolhido para receber e difundir pelo mundo a palavra de Alá." (- Dylan Frontana)

Ah, e, no fim das contas, Borges meio que facilita o trabalho dos biógrafos, né? Ora, segundo o raciocínio de BTIC, a escrita de uma biografia resume-se em narrar A noite do biografado. Aguardo a minha noite ansiosamente. Com sorte, ocorrerá através do próximo livro?

**
Por fim, há a presença do gaúcho simbolizado pelo duplo Isidoro Cruz-Martín Ferro (personagens originalmente criadas por José Hernández), entretanto, uma vez que acho esse papo chato (¯\_(ツ)_/¯), destaco somente que isso parece conceder relevância ao espaço em que vivemos, reconhecendo-o como um dos inevitáveis alicerces de nossas identidades. Osvaldo Ferrari, em uma de suas perguntas a Borges, menciona esta frase de Martinez Estrada que melhor explica o que contemplo: "(...) o espírito da terra, o que ele chamava o espírito do pampa, era o que conformava nossa substância, a substância da nossa personalidade".

Pronto; encerro minhas abobrinhas aqui. Bora ver o vídeo da Aimée. > LINK AQUI.


[Comentários pessoais pós-vídeo:]
Eita, banquei a palerma achando que o conto era só mais do mesmo, e muita coisa legal voou sobre minha cabeça. Bem feito, sabidona.

Montando uma listinha de destaques:
➭ Aimée alude à questão da equivalência dos destinos, confrontando-a à intervenção do acaso nos papéis que desempenhamos em vida (perseguidor/perseguido, heroi/traidor), e me impressionou um bocado que eu tenha ignorado essa palavra que aparece explicitamente no texto (identidade / personalidade, por sua vez, não aparecem). Pressinto que isso ocorreu porque não gosto dessa palavra — Destino — e prefiro não acreditar nela, possivelmente por temê-la.

O melhor, entretanto, é que ela acaba reforçando minha destemperada associação [Borges X Star Wars].

➭ Borges tomou emprestadas não apenas as personagens de José Hernández, mas inclusive trechos inteiros. Aimée diz que aquele lance do lobo x cão gregário, por exemplo, aparece igualzinho no poema épico de Hernández. Nesse sentido, ela chama atenção ao fato de que a citação de Coríntios (Bíblia), incluída por Borges no texto, se aplica àquilo que o próprio conto BTIC representa: "(...) num livro cuja matéria pode ser tudo para todos (1 Coríntios 9,22), pois é capaz de quase inesgotáveis repetições, versões, perversões."

➭ Levei tão a sério a assertiva de Borges de que a noite das compreensões era a única que importava, que nem me toquei de que há, na verdade, não uma, mas quatro noites críticas na vida de Isidoro Cruz. E na de Martín Fierro, claro.

➭ Também não notei conscientemente o espelhamento entre os detalhes que compõem as narrativas de Isidoro Cruz e Martín Fierro. E por falar em espelhar: o conto de Borges como espelho da obra de José Hernández (duplo).

➭ Contudo o espelhamento mais pitoresco, que me escapou completamente, é este: os gritos; sejam do pai, sejam do chajá. Pô, o déjà-vu de Isidoro Cruz é uma resposta ao grito do tal chajá! Que coisa.

*PAUSA*: qual é a aparência de um chajá? Como soa seu grito? Que bicho é esse?! YouTube, ajude aí:

 ➭ E curti esta classificação do conto: é um Mito de Origem.

- Mais uma vez, Aimée, muito obrigada!

03/07/2019

Lendo Contos| O Aleph - Jorge Luis Borges / história do guerreiro e da cativa

 (Editora Companhia das Letras / Tradução: Davi Arrigucci Jr.)

A poeta Aline Aimée, do ótimo canal (no You Tube) Chave de Leitura, disponibilizou resenhas em vídeo para cada um dos contos da coletânea O Aleph, de Jorge Luis Borges (link aqui). Aproveitando a chance de poder contar com alguém para enriquecer minha experiência de leitura, tentarei incluir postagens em resposta aos vídeos da Aimée. Um clube de leitura formado por duas leitoras, maaaaais ou menos. A sequência proposta para o post é a seguinte:

Leio o conto > Escrevo e registro minhas impressões gerais  >
> Assisto ao respectivo vídeo da Aline Aimée > Complemento as impressões com as novas informações e reflexões.


** RISCO DE SPOILERS **


[Impressões pessoais após a leitura do conto:]

Durante a leitura do livro Os Diários de Emilio Renzi, escrito por Ricardo Piglia, esbarrei com este esclarecedor trecho a respeito dos contos de Borges:
"(...) Borges sempre foi um contista clássico, seus finais são fechados, explicam tudo com clareza; a sensação de estranhamento não está na forma - sempre clara e nítida - nem nos finais ordenados e precisos, mas na incrível densidade e heterogeneidade do material narrativo."
                      - Ricardo Piglia; Os Diários de Emilio Renzi - Anos de Formação (Tradutor: Sérgio Molina) 

Tomo emprestadas as palavras de Piglia para teorizar que história do guerreiro e da cativa tem um final fechado e preciso que explica tudo com clareza; ou, expresso de outro modo, um final que, tal qual a epígrafe de o imortal, entrega de bandeja a chave do conto. Ora, depois da suadeira que tive para desatar os nós de os teólogos, ficou fácil destrinchar o presente texto, especialmente quando seu arremate se dá mediante a seguinte sentença:
"Talvez as histórias que contei sejam uma única história. O anverso e o reverso dessa moeda são, para Deus, iguais." 
Ou seja, em termos de temática, história do guerreiro e da cativa consiste em uma narrativa que condensa a teoria dos monótonos (referente à circularidade da história) e a cosmologia dos histriões (baseada em imagens especulares/duplos). Focando-se na narrativa das personagens do guerreiro e da cativa, é possível antecipar uma repetição circular do movimento entre mundos bárbaros ↔ civilizados, o qual é realizado por indivíduos que simbolizam as faces de uma mesma moeda e que, por conseguinte, constituem uma unidade. Isso permite inferir, a propósito, que não há juízo de valor entre aqueles pólos do deslocamento: um não é superior ao outro, e não cabe falar em termos de evolução/involução, progresso/declínio. Conforme escrito pelo próprio autor, eles são, para Deus, iguais. Curiosamente, recordei que, em janeiro de 2019, a revista Época noticiou uma narrativa real transcorrida no Brasil que sustenta a teoria de circularidade especular das histórias do guerreiro e da cativa. Organizando a sequência, fica:


- no século VI/VIII (?), o bárbaro lombardo Droctulft abandona os seus para juntar-se à civilização de Ravena;

- no século XIX, a loira inglesa emigrada de Yorkshire, após ser levada à força por índios na Argentina, acaba por integrar-se definitivamente à vida na tribo indígena;

- em 2004, a índia Lulu Kamayurá parte de sua tribo no Xingu para viver em uma grande capital do país.


Por sinal, é divertido constatar que este conto acaba assumindo, ele mesmo, o papel da imagem especular do conto anterior, que agora novamente retornaria, portanto, na forma de um duplo. Isto é (parafraseando Borges:), os teólogoshistória do guerreiro e da cativa seriam uma única história, o anverso e o reverso.
*

Estou ciente de que, no meu post para os teólogos, já extrapolei a cota de sandices relativas à unicidade formada pelas teorias da circularidade e dos duplos, logo não adicionarei desvarios correlatos. Haverá, contudo, uma diminuta emenda que nasceu a partir da releitura que fiz de minhas próprias postagens anteriores.

No post sobre o imortal, eu tinha incluído um breve comentário relacionado ao filósofo italiano Giambatistta Vico (citado por Borges naquele conto) e sua teoria de uma história cíclica. Admito que, a esta altura da empreitada, eu já tinha me esquecido por completo "desse tal" Vico; porém, quando reli o que eu havia escrito naquela ocasião, imediatamente baixou-me um espírito detetivesco e conjecturei que talvez valesse a pena investigar melhor o camarada. Ok; textinho lido aqui, textinho lido acolá, prontinho: garanto estar uns 89,7% convencida de que as ideias desse filósofo italiano do século XVIII têm tudo a ver com história do guerreiro e da cativa. Embora nem de longe minha superficial pesquisa tenha me tornado expert na filosofia viquiana, ousarei destacar dois pontos das ideias do filósofo que ~aparentemente~ conectam-se com a narrativa deste conto borgiano.

Vico, ao intermediar a lendária treta que existia entre naturalistas (Grócio) e céticos (Carnéades), contribuiu com ideias que defendem a convergência entre a sociabilidade natural do homem e a artificialidade do mundo civil. Aliás, é engraçado que, ao fazer isso, Vico denuncia o duplo constituído por céticos e naturalistas (um retorno circular dos monótonos e histriões?!); e por Carnéades e Grócio (o retorno circular de Aureliano e João de Panônia?!) Que preciosidade! Bom, minha hipótese é que essa premissa de Vico corrobora a concepção do duplo estabelecido pelo guerreiro e pela cativa, o anverso e reverso do humano. Na tentativa de demonstrar essa hipótese, sintetizarei mal e porcamente essa parte da teoria do filósofo.

A compatibilidade entre as noções de estado selvagem e sociabilidade natural se apresenta quando Vico afirma, por um lado, que o ser humano é por natureza sociável e, por outro, que ele recaiu e pode sempre recair na anosmia provocada pela completa dissolução das instituições sociais. O italiano formula uma concepção histórica da natureza humana na qual existiria um estado selvagem resultante do isolamento voluntário de alguns indivíduos. Dessa forma, Vico quer demonstrar o caráter social da natureza humana por meio de uma via negativa: a natureza humana não subsiste sem instituições (→ no conto, elas estariam representadas na emblemática descrição da cidade de Ravena); o homem isolado é incapaz de conservar as propriedades que o distinguem dos animais (→ lembrar da passagem em que a índia loira bebe o sangue da ovelha degolada).

A filosofia viquiana igualmente me parece fundamentar a circularidade presente em história do guerreiro e da cativa, notadamente em referência à movimentação barbaridade ↔ civilidade. As instituições estabelecidas, conservadas, transformadas pelos seres humanos e das quais depende a sociabilidade humana variam no decorrer do curso histórico que as nações percorrem, o que implica no surgimento de novas propriedades na natureza humana. O esquema histórico defendido por Vico concebe três idades sucessivas, definidas segundo a teoria da forma de governo:

a idade dos deuses: governo patriarcal pré-político
a idade dos heróis: a república aristocrática
a idade dos homens: a república popular e a monarquia

A história da natureza humana trata-se de um processo pelo qual a natureza selvagem é modificada sucessivamente por distintos tipos de instituições. Nesse contexto, as vontades humanas e a autoridade das leis, a qual também depende do reconhecimento dos homens, são o único fundamento sobre o qual se assentam as instituições (→ recordar que guerreiro e cativeira escolhem, por vontade própria, seus destinos finais). A derrocada das instituições racionais da idade humana voltaria a instalar a natureza humana nas condições da barbárie primitiva, começando um novo ciclo histórico. Dessa maneira, Vico defende uma História que evolui mediante uma circularidade marcada pela alternância entre ascensão e queda de nações, as quais eternamente avançam e recuam através desse ciclo, passando por cada uma daquelas três idades diversas vezes.

Por tudo isso, enfim, creio que Borges praticamente pegou um significativo substrato da tese de Vico e o transformou num de seus contos. Derrapei no sabão?

[P.S.: quando li que Vico associa a barbárie à derrocada das instituições e a um estágio em que o egoísmo dos cidadãos impede a confiança mínima indispensável para que a sociedade propriamente humana se conserve, passei a questionar seriamente se nossa atual realidade social corresponde à fase histórica da transição para a barbárie, a fim de iniciarmos futuramente um novo ciclo. Será? Xi.]

[Principais fontes: 1. Metafísica do gênero humano: natureza e história na obra de Giambattista Vico; Edufu, 2018 2. Internet Encyclopedia of Philosophy: Giambattista Vico.]

**

Quanto à forma, suponho ser possível dividir este conto em duas partes: na primeira, o autor desenvolve algo que se aproxima de um artigo técnico redigido por um historiador; enquanto a segunda se aproxima da estrutura que eu mesma recorrentemente utilizo ao comentar minhas leituras no blog. Borges blogueirinho?! EITA! Calma, não ria, porque o papo é sério. Acompanhe meu raciocínio finíssimo. Borges inicia história do guerreiro e da cativa contextualizando técnica e historicamente sua leitura (informa autoria, datas, sinopse etc) e, em seguida, passa a narrar as memórias pessoais que foram-lhe evocadas a partir daquele respectivo livro, conferindo à segunda parte um tom confessional de memorialista. Inclusive, pensando desse jeito, é possível dizer que reaparece um dos temas de o imortal referente à concepção de imortalidade relacionada a livros. Um livro (o do historiador Paulo) puxou outro (o livro de Croce), que puxou outro (o conto de Borges), que puxou este post de blog, que puxou... Uma matriosca literária!

Outro marcante aspecto narrativo corresponde ao fato de que Borges parte de fatos reais - Droctulft realmente existiu, como também são verídicos o livro de Croce e os textos do historiador Paulo - para criar uma obra dita ficcional. Ainda que a narrativa seja inventada, ela é construída de modo que pareça tão verdadeira quanto os elementos apropriados a partir do "mundo real". Dia desses mesmo, li um trecho em que novamente Piglia discute esse exato método narrativo:
"O curioso desse aparente verismo é que ele justifica, com os fatos "verdadeiros", uma narração imaginária. (...) tornar verdadeiro um mundo real e me apoiar em fatos que aconteceram para construir um romance no qual tudo é imaginário, exceto os lugares, alguns eventos e o nome dos protagonistas. (...) 
O romance como indagação da realidade. (...) uma vez que a história já está no real, e é necessário poder reconstruí-la e narrá-la, como se não fosse inventada."
                     - Ricardo Piglia; Os Diários de Emilio Renzi - Anos de Formação (Tradutor: Sérgio Molina) 

Nem é preciso esforço para notar essa engrenagem, pois Borges a revela no texto mediante um convite explícito (ah, e reencontro a figura do narrador que não tem certeza do que narra):
"Não sei sequer em que época aconteceu (...). Imaginemos (este não é um trabalho histórico) (...) 
Muitas conjecturas podem ser aplicadas ao ato de Droctulft; a minha é a mais econômica; se não for verdadeira como fato, será como símbolo."
Imaginar! é o grande lema da literatura, e Nabokov defende justamente isso no texto Bons leitores e bons escritores, lido recentemente:
"Literatura é invenção. Ficção é ficção. Chamar uma história de verdadeira é um insulto tanto à arte quanto à verdade. Todo grande escritor é um grande impostor, mas assim também é a natureza, essa trapaceira contumaz."
        - Vladimir Nabokov; Bons leitores e bons escritores (Lições de Literatura). (Tradutor: Jorio Dauster)

***

Desde o primeiro conto, Aimée, em seus vídeos, ressalta a recorrente contestação da personalidade que se faz presente na obra de Borges. Certo, pois assimilada a dica, avalio que essa questão é abordada neste conto. A concepção do duplo guerreiro/cativa refuta a noção de personalidade, substituindo-a pela noção de equivalência entre os homens. Além do mais, enquanto vivo, Droctulft logrou a artimanha de ser tanto herói, como traidor. Ora, em determinados instantes de sua vida e a depender do ponto de vista (italianos / lombardos), ele foi simultaneamente herói e traidor! 

Esta bela passagem, por exemplo, propõe uma outra perspectiva para essa reflexão:
"Imaginemos Droctulft, sub especie aeternitatis*, não o indivíduo Droctulft, que sem dúvida foi único e insondável (todos os indivíduos o são), mas, como ele e outros, o tipo genérico criado pela tradição, que é obra do esquecimento e da memória. "
 * = sob a forma de eternidade

Nela, Borges parece cindir a identidade humana em duas partes coexistentes (duplo de novo?): uma singular, repleta de pormenores; outra universal, que se estabelece via narrativas/arquétipos/símbolos que se repetem circularmente ao longo da história da humanidade. 

****

E não é que, uma vez mais, associarei um conto de Borges às narrativas de super-heróis? #audaciosa Como já previamente compartilhado neste diarinho, não entendo nadica do universo de super-heróis, no entanto, durante o eventual contato com tais narrativas, comumente algo bastante específico me inquieta: de onde vem o apego quase doentio dessa galera por suas respectivas cidades?! Fico intrigada pelos discursos que se concentram na importância de defender não uma pessoa(s) ou sociedade, mas sim a cidade. Daí, Borges insere em história do guerreiro e da cativa uma descrição tão bela do fascínio que teria acometido Droctulft em relação à cidade de Ravena, que acredito que o enigma que me consome na relação super-heróis x cidades aproximou-se de uma resposta: 
"(...) vê uma cidade, um organismo feito de estátuas, de templos, de jardins, de quartos, de arquibancadas, (...) de espaços regulares e abertos. Nenhuma dessas construções (bem sei) o impressiona pela beleza, tocam-no como agora nos tocaria uma maquinaria complexa, cujo objetivo ignorássemos mas em cujo desenho se adivinhasse uma inteligencia imortal. (...) Bruscamente o cega e o renova aquela revelação, a Cidade. (...) não começará sequer a entendê-la, mas sabe também que ela vale mais que seus deuses e sua fé (...)"
*****

Agora uma confabulação extrapoladora bastante particular. Nos stories do instagram, Tatianne Dantas havia compartilhado um comentário peculiar que um leitor homem (supostamente) lhe escrevera no seu vídeo resenha para o livro Meridiano de Sangue, de Cormac McCarthy: "Eu não sou sexista mas honestamente este romance não é nada para as mulheres". Por que não seria para mulheres? O moço não se deu o trabalho de justificar, então parti para suposições: ou ele acha que mulheres são incapazes de compreender a prosa de McCarthy e/ou ele acredita que a história do autor americano não diz respeito/interessa a mulheres que, estando restritas ao meio doméstico, sequer viram passar o bonde da sangrenta história expansionista dos EUA, permanecendo ilesas a tudo. E o que isso teria a ver com história do guerreiro e da cativa? Bem, até certo ponto, ambas narrativas de Borges e McCarthy exploram movimentos históricos de expansão territorial marcados por violência extrema entre brancos e índios. Nessa onda, eis que desponta Borges narrando como duas mulheres se viram metidas no olho do furacão expansionista na Argentina. Que essas histórias pertencem a homens e mulheres (infelizmente), não me resta dúvida. Após a leitura deste conto de Borges, portanto, inevitavelmente acabei revivendo a amolação promovida pela confusa assertiva daquele leitor.


Pronto; bora assistir ao vídeo da Aline Aimé > LINK AQUI.



[Comentários pessoais pós-vídeo:]
Puxa, e não é que um duplo me passou batido?! No vídeo, Aimée diz que o próprio Borges (enquanto narrador do conto) e o diácono Paulo também são o anverso e reverso da moeda. Ela explica que Paulo, em seu trabalho como historiador, dedicou-se (dentre outras coisas) a escrever a história dos lombardos. Borges, por sua vez, ao assumir-se como narrador da história, se converte a historiador no momento em que decide contar as histórias de sua avó, as quais simbolizam a história de formação da América. Creio que não identifiquei esse duplo porque encaro a segunda parte do conto, aquela em que Borges surge explicitamente como narrador, como detentora de um aspecto formal mais próximo de um texto de memórias, do que exatamente histórico. Entretanto, isso serviu para que eu relembrasse algo super importante: são as histórias pessoais que compõem, conjunta e simbolicamente, a grande História. Boa.

Entrando na paranoia de procurar duplo em todos os lados, comecei a achar que talvez eu e Aimée estejamos compondo um duplo. Duas leitoras de Borges, separadas no tempo e no espaço, em diferentes estágios de intimidade com a obra do autor argentino. Rola? Náh, passei do ponto, né? Beleza; então é hora de encerrar o post. ;)

12/06/2018

Lendo Contos | O Aleph - Jorge Luis Borges / os teólogos

 (Editora Companhia das Letras / Tradução: Davi Arrigucci Jr.)

A poeta Aline Aimée, do ótimo canal (no You Tube) Chave de Leitura, disponibilizou resenhas em vídeo para cada um dos contos da coletânea O Aleph, de Jorge Luis Borges (link aqui). Aproveitando a chance de poder contar com alguém para enriquecer minha experiência de leitura, tentarei incluir postagens em resposta aos vídeos da Aimée. Um clube de leitura formado por duas leitoras, maaaaais ou menos. A sequência proposta para o post é a seguinte:

Leio o conto > Escrevo e registro minhas impressões gerais  >
> Assisto ao respectivo vídeo da Aline Aimée > Complemento as impressões com as novas informações e reflexões.


** RISCO DE SPOILERS **


[Impressões pessoais após a leitura do conto:]

E após um conto de "nível médio de dificuldade", encaro agora um de "nível hardcore" repleto de citações filosóficas e teológicas a respeito do tempo; um assunto, assim, fácil e simplezinho, não é mesmo? Pois aceito o desafio, ansiosa para descobrir o tamanho da presepada que cometerei desta vez.

***

Ok; concluída a leitura, fui tomada por uma empolgação e por um furacão caótico de ideias e reflexões. Tentando ordenar a bagunça mental, elaborei um resuminho de três páginas (A4) para Os teólogos (cujo texto consome cinco páginas ~A5. Ou seja: """resumo"""), porém minha situação permaneceu mais ou menos assim:


São tantas as conexões possíveis, que eu sequer sabia por onde começar a escrever estas impressões. O socorro veio através de um artigo da BBC Culture, o Every story in the world has one of these six basic plots, no qual Miriam Quick 1. resgata a tese de Vonnegut sobre os seis formatos gráficos assumidos pelos arcos narrativos dos protagonistas de histórias e 2. expõe as conclusões da pesquisa coordenada pelo professor Mathew Jockers concernentes à existência de seis tipos básicos de histórias graficamente transponíveis. Essas informações me renderam o momento "Eureka!": "Sim, acho que consigo colocar os principais pontos do conto de Borges em único gráfico!"
Aqui está o resultado da minha audaciosa empreitada:


Fala sério, nem preciso explicar, preciso? Brincadeira; me esforçarei, sim; até porque nem sei se marquei um gol ou se chutei feio pra fora. Opto por listar os aspectos principais da minha teoria tresloucada; vejamos se consigo:

(1) A própria estrutura narrativa de Os teólogos adquire a temporalidade circular proposta pelos Monótonos e igualmente confirma a profecia que Euforbo vaticina enquanto queima na fogueira: "Isto aconteceu e voltará a acontecer."  Transcorre no conto a sequência destacada no círculo: Surge uma "nova" teoria/"nova"(s) comunidade(s) supostamente herética(s) → Um sabidão aparece para refutá-la → Algo/Alguém vai parar na fogueira / queima → Surge uma "nova" teoria/"nova"(s) comunidade(s) supostamente herética(s) → Um sabidão aparece para refutá-la → Algo/Alguém vai parar na fogueira / queima → 

(2) A marcação no círculo dos eventos recorrentes parece demonstrar que a cosmologia dos Histriões, baseada na ideia dos espelhos e suas imagens especulares, não contradiz nem se opõe à prévia teoria circular dos Monótonos. Cada evento que retorna, que se repete, tem seu reflexo no exato ponto oposto da circunferência conforme assinalado pelas setas "↔" - 0°x 180° / 60° x 240°/ 30° x 210°... E, desse modo, a narrativa também se constrói em concordância com a proposição dos Histriões. 

(3) Os eventos especulares, avalio, funcionam como duplos, são as facetas opostas que compõe uma mesma unidade. Em outras palavras: são os dois lados da mesma moeda. Na minha análise maluca, isso ganha relevância especialmente quando pensamos nas diversas teorias heréticas que repetidamente surgem ao longo da linha temporal circular proposta nesse conto: sendo duplos de uma entidade una, como podemos considerá-las totalmente distintas? Segundo insinua meu esquema, afinal, as doutrinas dos Monótonos e Histriões se complementam; elas não se anulam absolutamente. Exponho toda essa lenga-lenga devaneante para tentar corroborar a sensação de que tudo e todos que queimaram na fogueira o fizeram em nome das mesmíssimas teses, cujas expressões por metáforas dificultam a percepção da equivalência.

E se as teses atacadas são as mesmas, logo os respectivos textos impugnantes repletos de metáforas também são essencialmente os mesmos, ainda que reapareçam na forma do duplo da mesma unidade. Aureliano e João de Panônia se digladiavam intelectualmente defendendo ideias coincidentes, eles próprios personificando a metáfora do duplo. Não à toa, já no céu, Deus toma Aureliano por João de Panônia, visto que inexiste diferença entre os dois. 
"(...) no paraíso, Aureliano soube que para a insondável divindade ele e João de Panônia (o ortodoxo e o herege, o abominador e abominado, o acusador e a vítima) constituíam uma única pessoa."
Quando os teólogos supunham refutar a herege corrente histriônica, nem percebiam que continuavam concomitantemente refutando a velha corrente dos monótonos, dado que ambas se complementam para construir uma doutrina única. Inclusive, é disso, em parte, que transparece certo teor tragicômico presente na morte de João de Panônia: o que ontem ele escreveu sob acalorada recepção, hoje é considerado blasfêmia, porque as "novas" heresias transpõem seus ditos passados para a posição do duplo oposto. Sinto-me afoita o suficiente para montar uma tabelinha explicativa:

                        Tese B
Heresia  A |    Refuta
Heresia -A |    Ratifica

(Fez sentido?! Nem eu sei! Espero que sim.) A coisa toda fica ainda mais hilária quando Panônia, em sua defesa, refere que não poderia negar o que ele dissera em sua antiga tese, pois isso implicaria confirmar a própria heresia dos Histriões baseada nos espelhos; ou seja, reconheceria o duplo, a existência de entidades reflexas no mundo. (Tese B da tabela.)

Em decorrência de todas essas ruminações, uma impactante frase de Joseph Campbell, com a qual cruzei recentemente assistindo ao "O Poder do Mito", reverberou em minha cabeça durante toda a leitura desse conto. Transcrevo, a seguir, a breve passagem da entrevista, grifando a frase específica a que me refiro - ah!, e incluo a cara do Campbell ao pronunciá-la, pois é perfeita demais para permitir que se perca no meu limbo memorial:
(Joseh Campbell:) Goethe diz: ''Todas as coisas são metáforas. (...) Tudo que é transitório não passa de uma referência metafórica." É isso que todos nós somos. 
(Bill Moyers:) Mas como se pode reverenciar uma metáfora... amar uma metáfora, morrer por uma metáfora?

(Joseh Campbell:) É isso que as pessoas fazem em todos os lugares. Em todos os lugares do mundo. Elas morrem por metáforas.

Certo. Pois eis que Borges conclui Os teólogos com esta frase:
"O final da história só pode ser contado por metáforas, uma vez que se passa no reino dos céus, onde não há tempo."

Detalhe relevante: esse "no reino dos céus, onde não há tempo.", pra mim, é metáfora, hein. O reino nada mais é do que o "aqui e agora". Nossas histórias são contadas por metáforas. As histórias dos Monótonos, dos Anulares, dos Histriões, dos Especulares, de Aureliano, de João de Panônia, a minha etc; todas são contadas por metáforas que, com pequenas variações, acabam afirmando a mesma coisa.

De qualquer maneira, eu nem precisava ter apelado para o auxílio de Campbell, visto que o próprio Borges tratou desse assunto no ensaio A esfera de Pascal, incluído no livro Outras Inquisições.
"A história universal é, talvez, a história de umas quantas metáforas. 
(...)  
A história universal é, talvez, a história da diferente entonação de algumas metáforas."
- Jorge Luiz Borges, A esfera de Pascal (Outras Inquisições - trad.: Davi Arrigucci Jr.)

Nesse ensaio, Borges sustenta que a metáfora geométrica da esfera retorna continuamente, com mínimas variações, através das vozes e escritos de diferentes poetas, teólogos, filósofos e pensadores desde o século 6 a.C. até o século XVII, com Pascal: "Uma esfera terrível cujo centro está em toda parte e a circunferência, em nenhuma." Aliás, a metáfora permanece sendo utilizada até hoje, sim? Jung e a galera que curte mandalas (círculo sagrado) e a busca pelo centro estão aí para comprovar. Campbell, instigado por Moyers no mesmo programa, curiosamente também fala da figura do círculo.

(4) Divertidamente, as premissas centrais dos dois contos anteriores da coletânea - O imortal e O morto -  retornam em Os teólogos, estabelecendo uma perfeita sintonia com a ideia de que "as coisas recuperarão seu estado anterior." Como? Nas minhas elucubrações, assim:
     4.1. (O imortal:) Cada heresia e respectiva contestação regressa continuamente nos ciclos seguintes na forma de duplos, processo que representa o único meio possível para a conquista da imortalidade = mediante propagação, pelas gerações, das palavras, dos livros, das ideias. Nesse contexto, a descrição do modo com que cada teoria era elaborada (as hereges e as refutadoras) chama muita atenção, uma vez que todas consistiam praticamente em uma mera colagem de vários pequenos trechos pinçados a partir de obras escritas anteriormente, de autorias diversas;

     4.2. Com O morto, aprendi que é necessário estar atenta para não bancar o "leitor otálora", aquele que equivoca-se ao ler sua própria narrativa e que, acredito, facilmente se deixa ludibriar por metáforas que - adivinhe? sim: - tratam da mesma coisa.

***

Para arrematar minhas especulações, destaco um interessante esclarecimento escrito por Hernán Nemi e incluído no livro Borges Babilônico, enciclopédia organizada por Jorge Schwartz (Companhia das Letras, 2017), no qual o autor ressalva que Borges, ao longo de sua obra, nem sempre defende exclusivamente a teoria circular do tempo associada ao eterno retorno. Isto foi o que encontrei em os teólogos - tanto no tratamento do tema, como na própria estrutura narrativa -, porém, em outros contos borgianos, poderei deparar-me com concepções diversas sobre o tempo. Anotado!
"Contudo, o maior achado borgiano não consiste em mencionar em meio a seus textos posturas distintas referentes ao tempo, mas em construir relatos cuja trama se desenvolve respondendo a diferentes concepções temporais. Isto é, em alguns contos, a ação se inscreve em um tempo linear, enquanto em outros este é circular ou subjetivo, ou coexistem tempos simultâneos. Isso demonstra ser errado sustentar que o Borges autor adere a uma concepção circular do tempo, relacionada ao eterno retorno. Em alguns contos, ele adere a essa concepção, mas, em outros, a desmente de forma taxativa, e opta por outras. Nesse sentido, sua posição diante do conhecimento vai ao encontro das ideias do filósofo alemão Friedrich Nietzsche (v.), o qual vê toda concepção do mundo como uma ficção útil para explicar em caráter momentâneo a falta de sentido da existência mas que nem por isso deixa de ser uma ficção transitória, sem um valor de verdade em si e que necessariamente deverá dar lugar a outras novas ficções que de modo progressivo ajudem a dar conta da realidade. (...) 
Ao longo de toda a produção de Borges, coexistem concepções diferentes e antagônicas sobre o tempo: linear, circular, subjetivo ou simultâneo. Seu maior êxito não foi incluir tais conceituações nos contos, à maneira de comentários ou digressões, mas haver conseguido que seus textos narrativos se estruturassem de acordo com cada uma dessas noções temporais. Nesse sentido, a obra de Borges demonstra a relatividade de toda concepção do mundo."
- Hernán Nemi, Borges Babilônico (Organização: Jorge Schwartz)

***
"Como todo possuidor de uma biblioteca, Aureliano se sabia culpado de não conhecê-la até o fim; (...)
E esse trecho do conto me obriga a tomar emprestado aquele versinho de Gilberto Gil: 
"a paz invadiu o meu coração..."  


Ok, hora de apertar play no vídeo da Aline Aimée. (*Medo*) > LINK AQUI



[Comentários pessoais pós-vídeo:]

Ah, mas que beleza: após descobrir que sou uma leitora otálora, encaro agora a revelação de que escrevo "aurelianamente". Ok, ok; é a vida, fazer o quê? Ou melhor (conforme abordou Aimée, dentre as temáticas de Borges): ~é o acaso~.  ¯\_(ツ)_/¯

Bom, vista a resenha da Aimée, julgo que me saí ~razoavelmente~ bem. Poxa, poderia ter sido muuuuito pior. Vale a pena assistir ao vídeo — como de praxe: excelente —, no qual ela faz uma bela lapidação nas questões que consegui captar e incluir em minhas impressões.

Seguidamente, insiro apenas algumas passagens da resenha dela que me foram caras e que complementam com maior destaque esta minha viagem borgiana:

→ Admito logo que os presentinhos cômicos, os easter eggs borgianos (e temos mais essa; ora, ora), voaram, sim, por cima da minha cabeça. A verdade é que, quando os diversos nomes que ele solta no texto começaram a se empilhar formando uma montanha gigantesca, desisti sem dó de sair googlando um por um. Perdão.

No entanto, ainda que eu não tenha pescado a piadinha que Aimée relata sobre a dupla Bossuet e Harnack, esses dois não tinham me passado batido. Uma vez lida, esta passagem foi circulada
"(porque os testemunhos diferem e Bossuet não quer admitir as razões de Harnack)"
e, ao seu lado, interroguei à lápis: "esse par (Bossuet + Harnack) representaria O Retorno de Aureliano + Panônia?!" Derrapo no sabão, ou faz sentido?

→ A Aimée ressalta a estrutura do conto, que realmente é peculiar; quase todo escrito como um artigo teológico, não fosse o parágrafo final que pitorescamente quebra o tom acadêmico geral.

→ Quando Aimée comenta que Borges exibe um humor que revela certo prazer no caráter especulativo das teorias teológicas, minha memória devolveu esta informação presente na obra Com Borges, do Manguel:
"(Borges) Lia teologia com um prazer entusiasmado. << Eles acreditam, mas não se interessam; eu me interesso, mas não acredito.>>  Admirava o uso metafórico dos símbolos cristãos feito por santo Agostinho. <<A cruz de Cristo nos salvou do labirinto circular dos estoicos>>, citava, deliciado. E depois acrescentava: <<Mas ainda prefiro o labirinto circular>>."
- Alberto Manguel, Com Borges (Editora Ayiné; trad. Priscila Catão)

→ Não atentei, de fato, à possibilidade de classificar a presença do duplo como um artifício usado por Borges para refutar a ideia da personalidade. Aimée aponta que, tal qual ocorre em O Imortal, A Forma da Espada e O Tema do Traidor e do Herói, o conto Os teólogos denuncia a equivalência entre os homens. Herói e traidor se equivalem, de modo que a distinção entre eles existe apenas no campo da humanidade. E a escolha de quem assume o papel de herói e o de traidor é responsabilidade do digníssimo Acaso.

Ainda quanto ao duplo, Aimée acrescenta outro importante ponto que me fascina bastante: ele permite a autoanálise. É através da relação com João da Panônia que Aureliano percebe a equivalência existente entre ambos, o que o induz a questionar todas suas prévias certezas a respeito de si mesmo e, em última instância, de sua própria concepção do mundo. Peguei-me refletindo que, nos tempos atuais marcados por tamanha intolerância em relação àqueles minimamente diferentes, essa temática da “autoanálise pelo duplo” ganha considerável relevância.

Complemento apenas mencionando que, no começo do conto e antes de todo o imbróglio teológico superveniente, Aureliano já compreendia que as “verdades espirituais” costumam ser tratadas pelos homens de um jeito meio, digamos, ensaboado:
(grifo meu:)
“Aureliano (...) sabia que em matéria teológica não há novidade sem risco; depois refletiu que a tese de um tempo circular era demasiado ímpar, demasiado assombrosa, para que o risco fosse grave. (As heresias que devemos temer são as que podem se confundir com a ortodoxia.)”
→ Para concluir circularmente esta parte do post, retorno ao tema borgiano do "acaso", tratado por Aimée na discussão do duplo em Os teólogos. No instante em que ela tocou nesse tópico, e dada a maneira com que ela se expressa, me lembrei prontamente da dedicatória que Borges escreve no seu livro Primeira Poesia:
(grifo meu:)
"a quem ler 
Se as páginas deste livro consentem algum verso feliz, perdoe-me o leitor a descortesia de ter sido, previamente, por mim usurpado. Nossos nadas pouco diferem; é trivial e fortuita a circunstância de que sejas tu o leitor destes exercícios, e eu seu redator." 
- Jorge Luis Borges, Primeira Poesia (Companhias das letras; trad.: Josely Vianna Baptista)

Ele é Borges, eu sou essa pateta leitora otálora; e é tudo obra do estimável Acaso. Beleza. 👍

P.S.: mais uma vez, agradeço Aline Aimée pelo ótimo vídeo.

03/06/2018

Stiller - Max Frisch

[* As falas de Llosa são adaptadas a partir da resenha que ele publica no livro La Verdad de las Mentiras - Alfaguara (2002).]
***

Daniela: Llosa, tem tempo para outro papo? Concluí mais uma leitura da sua lista.


Llosa: Olá, Daniela; tenho sim. Conversaremos a respeito de que obra?


Daniela: Massa! Hoje o tema da nossa conversa será este aqui: Stiller, de Max Frisch; ou, na tradução lida por você, No Soy Stiller.
Tradução: Irene Aron.
Edição Siciliano: 1992
Originalmente publicado em 1954


Daniela: De cara, acho que vale abordar o elefante branco na sala: Llosa, você andou escrevendo/falando umas paradas controversas por aí, confere?


Llosa: Suponho que refira-se a estes dois textos: link 1, link 2.


Daniela: Exato. Toco logo nesse assunto, porque você sabe como as coisas funcionam na internet: minha disposição para seguir dialogando com você funciona, para a galerinha esperta, como a prova cabal de que concordo com absolutamente todas as suas opiniões e que — para usar uma velha expressão bacana — "sou da sua laia"; merecendo, assim, ser execrada sem dó. Hum... Pera lá... Rá! Sim, sim; suspeito de que esse fenômeno que ocorre na internet dialoga bem com um aspecto desse livro do Frisch, hein. Explico.

Daniela: Na internet, não somos quem julgamos ser. Nesse caso envolvendo sua controvérsia, por exemplo, eu serei aquela que o julgamento premeditado da pessoa do outro lado da tela fizer, e fim de papo. Aqui, mais do que em qualquer outro espaço, é o outro quem define minha identidade, sem possibilidade de defesa. Pior: o olhar do outro me define para sempre, já que, na internet, ninguém recebe permissão para mudar, nem chance para tentar se redimir.

Daniela: Como antecipei as divagações literárias, começarei a soltar imagens de uns trechinhos favoritos do livro de Frisch. Este aqui aborda bem o que estou tentando expressar:

Daniela: Mas enfim, estou atropelando nossa discussão e meio que tergiversando. Retomando o que eu dizia: achei aqueles seus pontos de vista meio complicados, porém escolho, aqui e agora, falar só sobre este livro mesmo, ok? A controvérsia será menor. Ou nosso papo sobre o livro de Frisch será polêmico?


Llosa: Certo. Sim, também estou curioso para descobrir se concordaremos em tudo ou se surgirão controvérsias entre nossas opiniões. Sobre o ponto que você adiantou; a respeito de sua impressão de leitura e do trecho destacado: entende que essa é a temática principal do livro?


Daniela: Na verdade, penso que o livro explora diversos temas que se inter-relacionam harmoniosamente e, nesse sentido, não ousaria definir um único tema principal. Entretanto minhas elucubrações identificaram uma tríade central de temáticas que, ao longo da narrativa, são afunilados pelo autor. Pode ser?


Llosa: Claro que sim. Borges, por exemplo, dizia que o livro muda para cada leitor, não é mesmo?
Quais são os temas que ocupam os vértices da tríade?


Daniela: [Liberdade] x
[Construção de nossa identidade/realidade] x
[Papel da escrita / linguagem / palavra].


Llosa: Certo. Fisgarei o vértice “liberdade” para lançar uma pergunta: acredita que Frish incluiu a própria Suíça nessas discussões sobre a liberdade?


Daniela: Com certeza; afinal, não é à toa que White/Stiller é preso tão logo põe os pés na Suíça. O protagonista funciona como um provocativo contraponto aos cidadãos suíços supostamente livres do lado de fora da cela, ou, mais precisamente, como uma alegoria da própria Suíça, me parece. Aliás, antes de prosseguir, vale ressaltar que liberdade não é algo fácil de conceituar, correto? "Livre! Livre! Livre! e em vão rogo-lhe a dizer uma vez: livre de quê? e principalmente! livre pra quê?" Reconhecida a complexidade, volto aos suíços: o tom das críticas que White/Stiller recorrente e insistentemente lança contra o país levanta dúvidas sobre a liberdade que os suíços julgam possuir. Como considerá-los livres, se vivem constantemente com medo de um futuro que possa destruir todo o desenvolvimento conquistado, com medo de terem seus negócios arruinados?


Llosa: Verdade. A liberdade de que os suíços se gabam não é mesmo real, pois o conformismo erradicou da vida deles o perigo da dúvida e, para Stiller, essa atitude é prototípica da falta de liberdade. Nessa atmosfera de suficiência opressora, tudo que implica em risco ou ruptura com as formas estabelecidas da existência tende a ser reprimido e evitado.


Daniela: Pois é. White/Stiller não se acanha sequer no momento em que denuncia a hipocrisia presente no envolvimento da Suíça na Segunda Guerra Mundial. Conforme a personagem, foram questões econômicas, e não uma alardeada superioridade moral, que levaram os suíços a se envolverem no conflito. Somente quando o moço Führer começou a ameaçar e atrapalhar os negócios da Suíça, é que eles se viram sem escolha (= caímos novamente na falsa liberdade, portanto!), obrigados a meter o bedelho onde não queriam.

Daniela: White/Stiller não tem a menor dúvida de que, se o fascismo tivesse ajudado a Suíça a enriquecer, o posicionamento do país durante a guerra teria sido bastante diferente. São acusações realmente pesadas que Frisch dirige à Suíça através das falas dessa personagem.

Daniela: Ah, e sabe quem Frish me lembrou por conta disso? Thomas Bernhard; outro escritor que dedicou amplo espaço na sua obra literária para meter o sarrafo em outro país europeu; no caso, a Áustria.


Llosa: Exato; são acusações e críticas tão contundentes, que nos levam a acreditar que não há pesadelo mais sinistro do que ser suíço, concorda?


Daniela: Concordo, mas tenho uma confissão a fazer. Como sou uma leitora que sempre viveu no Brasil, foi relativamente custoso deixar o cinismo de lado para abraçar a empatia que me permitisse compreender o lado do autor. Sabe aquelas irônicas e jocosas expressões em inglês, por exemplo,“First World Problems / White People Problems”? É difícil negar que é disso que o protagonista fica se lamuriando ao falar mal da Suíça - ainda mais pra uma leitora brasileira.

Daniela: Por exemplo, quando White/Stiller começa a fazer poesia com a desgraça que observara nas ruas do México, tomadas por urubus e pedintes miseráveis, fica muito complicado continuar suspendendo o cinismo descrente. Claro, a monstruosidade tem seu lado sublime, ok; contudo,
quando é você quem vive na realidade monstruosa, a tarefa de sublimação é bem mais trabalhosa.


Llosa: Consigo entender seu sentimento — afinal, também sou latino-americano — entretanto saliento que a visão crítica de Frish faz muito sentido. A obra reforça que o preço pago para desfrutar do progresso material e do desenvolvimento político é a monotonia da existência, o conformismo endêmico e o declínio da fantasia. Ocorre uma formalização das emoções e dos sentimentos que reduz as relações entre os seres humanos a gestos e palavras rituais desprovidas de substância. É como a própria História facilmente nos demonstra: todo progresso humano traz consigo novas formas de frustração e infelicidade e, por conseguinte, novos motivos para inconformidade e desejo de uma vida diferente e melhor. Por mais avançada e admirável que seja uma sociedade, ela sempre será tomada por insatisfação.


Daniela: Compreendo. Essa interpretação, de fato, não havia me ocorrido. Acredito que ela surge de um ponto de vista, digamos, macro; sendo que minha atenção foi fisgada muito mais pelos aspectos micro da narrativa - o que nem me surpreende, já que, em obras de ficção, costumo preferir o conflito homem x homem, do que o homem x sociedade/sociedade x sociedade. Contudo sua afirmativa de que o progresso de uma civilização está sempre atrelado a algum tipo de inconformismo também parece valer para nossas próprias jornadas individuais, não?

Daniela: A construção de nossa identidade, nossa busca por saber quem somos e pela definição do papel que ocupamos no mundo nunca termina, pois nunca estaríamos plenamente satisfeitos, tal qual ocorre com as sociedades. Será? Por sinal, talvez essa seja, em parte, a fonte da angústia que consome White/Stiller. Ele foge desesperadamente de si mesmo e das regras sociais que restringem sua liberdade de ser quem ele quiser, porém não parece encontrar uma resposta final satisfatória.


Llosa: No entanto destaco que essa insatisfação permanente das sociedades — ou, quem sabe, até do indivíduo, como você alega — não significa que os conceitos de civilização e progresso não existam, mas, sim, que essas noções nunca se traduzem em formas acabadas e perfeitas. É preciso que a insatisfação exista, pois é graças a ela que a cultura humana chegou tão longe. Se não fosse assim, seria necessário provocar o descontentamento para garantir a saúde futura de um povo; ainda que seja forçoso admitir que o progresso não tenha sido capaz de tornar as pessoas mais felizes. Pra mim, este é o ponto central do livro: o desenvolvimento tornou os homens menos pobres, mais cultos e mais livres, no entanto não foi capaz de os fazer mais felizes.


Daniela: Interessante. Minha atenção realmente não havia focado no confronto entre a infelicidade da personagem e o grande progresso de seu país, do que resultaria o aparente paradoxo que você aponta. E acho que não fiz essa ligação porque, mesmo vivendo em um país problemático como o Brasil, consegui identificar-me facilmente com a inquietação de White/Stiller. (…) Hum, espere um momento... Agora caí na toca devaneante do coelho. Acompanhe o raciocínio que acaba de me ocorrer: e se essa minha (não) percepção seja um reflexo da posição que ocupo na sociedade brasileira? Digo, fazendo parte da classe privilegiada do país, a natureza de minhas angústias seriam típicas “First World Problems/White People Problems”, mesmo vivendo em um país subdesenvolvido? Caramba, fiquei até zonza.


Llosa: Pois aproveitarei esse seu raciocínio para lançar uma nova pergunta: mas o que acontece, afinal de contas, com o escultor? Por que ele foge de si mesmo e nega seu passado e seu nome com tamanho desespero obcecado? Essa fuga era ditada pelo remorso causado pelo fracasso da relação com Julika? Ou seria algo mais abstrato e complexo, uma negação de um estilo de vida incompatível com uma existência plena? Ou seja: que “angústias” são essas a que você, Daniela, se refere? Essa questão não é definitivamente respondida pelo romance, e fica por conta do leitor interpretá-la da forma que julgar melhor. A resposta pode ser desde um simples caso de esquizofrenia até uma crise metafísica.

Daniela: Bem, não senti dificuldade para responder essa pergunta ao longo da leitura. Se acertei ou errei, é uma outra história; haha.

Daniela: Inclusive, utilizei aquela tríade temática que citei no início de nossa conversa principalmente para esclarecer essas questões. A meu ver, a vida de White/Stiller estava marcada pela sensação de sufocamento e de culpa. Ele não estava satisfeito com o papel que a sociedade suíça e ele próprio (é lógico) haviam lhe atribuído. Muito menos com seu desempenho nesses papéis, ou com a realidade representada por aquela vida. Não conseguindo mais viver como o White/Stiller:
1. suíço (= preso na mediocridade do seu próprio país),
2. homem covarde (= não foi capaz de fazer a única coisa que se esperava dele durante a Guerra Civil Espanhola),
3. marido imprestável,
4. artista insignificante;
enfim, como um homem fracassado preso a uma vida de tédio, ele escolhe fugir. Ele foge da prisão que era sua vida na Suíça acreditando na esperança de que, agindo desse modo, conquistaria a liberdade necessária para construir para si a identidade que bem desejasse e para viver a realidade “perfeita”, a tal "vida verdadeira". Ele supunha que obteria paz ou, como comentamos no início, um sentimento de satisfação.


Llosa: Compreendi. E porque você segue usando o binômio White/Stiller? Ainda restam-lhe dúvidas
sobre a identidade dessa personagem?


Daniela: Pior que não; não me resta dúvida nenhuma; ele é mesmo Stiller. Acho que sigo usando o binômio por consideração à personagem. Bem ou mal, Stiller foi White aos meus olhos de leitora, ainda que ele tenha conseguido sustentar essa persona apenas durante os cadernos iniciais. Por mais que eu racionalize o impasse meio kafkiano da trama, tenho dificuldades em aceitar que a minha palavra ou de qualquer outra personagem do livro tenha mais valor do que a do White/Stiller no momento de definir quem ele é. 

Daniela: Ora, a ordem de prisão preventiva fundamenta-se unicamente no relato de uma testemunha, enquanto o cidadão prestes a ser preso afirma categoricamente que não é o tal Stiller. Poxa, isso não é maluco?! Então o que eu tenho a dizer sobre mim mesma não vale nada?! E o mais cômico/surreal é quando perguntam-lhe: “por que você não é Stiller”? Logicamente, caí na sandice de reverter a pergunta pra mim: por que eu sou Daniela? Quem foi que disse que eu sou Daniela? O que me faz ser Daniela? O que significa ser Daniela?! (rindo:) Ok, é melhor eu parar, caso contrário irei longe com essa palhaçada. Ah, e por falar em cadernos: de forma +- similar ao The Golden Notebook, da Lessing – último que discutimos, lembra? - a escrita aparece como meio para tentar descobrir a identidade e delinear a realidade de uma pessoa.

Daniela: A diferença é que, em Stiller, a iniciativa é externa ao indivíduo, dado que são as autoridades que entregam os cadernos a White/Stiller, que não acredita na efetividade do recurso da linguagem para essa empreitada. Colo uma passagem fascinante sobre isso:


Llosa: Concordo com você, as contradições objetivas e a convicção de Stiller alimentam nossa dúvida durante um bom tempo, porém logo a verdade transparece mediante o próprio testemunho de Stiller. Quanto à sua percepção do que ocorria com o protagonista, Daniela, imagino que você tenha adentrado na questão do “Amar o impossível”, sentimento que forma parte da natureza do homem, a quem foram concedidos o desejo e a imaginação, os quais o induzem sempre a querer romper os limites e alcançar aquilo que não tem. Mais do que as imperfeições da Suíça, isso é o que leva à ruína de Stiller, que parte em busca daquilo que entende como garantia de plenitude: a aventura e o exótico. 

Llosa: Destaco, no entanto, que, além dos sofrimentos humanos, o "amor ao impossível" também nos proporcionou extraordinárias façanhas do espirito humano, as obras mestras da arte e do pensamento,
os grandes descobrimentos científicos e — o mais importante — a noção e a prática de liberdade.

Llosa: Durante os anos de exílio voluntário, ele parece ter levado uma vida errante nos Estados Unidos e México. São descrições impregnadas de melancolia e que muitas vezes atingem um alto nível artístico. Será que Stiller, vivendo de maneira primitiva nos bosques de Oregon ou compartilhando a miséria e exploração dos camponeses mexicanos, encontrou a intensidade de vida que buscava e que não encontrava quando vivia na civilização urbana ocidental castradora? O testemunho dele é vago, porém a ironia e o sarcasmo de suas recordações parecem dizer que não.


Daniela: Exato! Acredito que ele não encontrou e foi por isso mesmo que afunilei aquela sua reflexão sobre as sociedades para o indivíduo. A busca do indivíduo pela perfeição está fadada a reiteradamente esbarrar em novas frustrações, em novos desejos não contemplados – como nas sociedades.

Daniela: Em várias passagens, o próprio White/Stiller percebe que, na verdade, ele precisava aprender a desapegar da exigência exagerada de si mesmo. Aprender a se aceitar sem tentar convencer os outros de ser quem não era. A fala que a mãe do amigo suicida dirige a ele, por exemplo, é certeira e pungente: "Se ele tivesse encontrado alguém na ocasião que não apenas o encorajasse com palavras e expectativas, e sim que lhe mostrasse como se vive com suas fraquezas -"

Daniela: E não é isso? Como viveremos em paz, se não aceitarmos nossas fraquezas? O contrário é possível? Não aceitá-las e viver em paz? Eu duvido. Agora; com toda certeza não é nada fácil aceitá-las e fazer as pazes com elas. White/Stiller que o diga, coitado. (E eu também...)


Llosa: Verdade. Ao retornar, ele parece compreender que a vida real nunca estará à altura de seus sonhos e que a insatisfação que o fez desaparecer nunca será saciada. Salvo, sem dúvida, no plano da imaginação, da ficção, onde os homens conseguem saciar sua vocação pelo excesso e o anseio por existências fora do comum, ou pelo drama e o apocalipse. Inclusive, Stiller igualmente aprende isso durante seus dias na prisão. A personagem entretém o carcereiro Knobel relatando-lhe uma série de supostos crimes que teria cometido e outras tantas anedotas cheias de graça e de cor, mas que claramente são falácias ou casos distorcidos. São páginas pelas quais o leitor agradece por conta do humor e da astúcia que elas possuem, verdadeiros bálsamos em um livro de movimentos lentos, saturado de sombrio pessimismo.


Daniela: Opa, pois falando em movimento lento: e quanto aquela lorota sem fim representada pelo casal Rolf e Sibylle? Retifico: triângulo amoroso, visto que Stiller entra na treta. Amante da esposa do promotor do seu próprio caso... Jesus. Com esse elemento da trama, ficou claro que o autor amplia a discussão sobre a liberdade também para o âmbito do casamento (Stiller e Julika são outra ponta), porém, mesmo assim, achei um pouco despropositado, meio desconexo dentro do livro. Ah, e muitíssimo chato, pois consumiu inúmeras páginas de uma narrativa que torna-se cada vez mais lenta e arrastada com as idas e vindas desse casal. O que você tem a dizer sobre o papel desses dois na obra?


Llosa: A história desse casal, assim como a de Stiller e Julika, surge para demonstrar como a mediocridade na qual a Suíça estava imersa havia realmente se infiltrado nos relacionamentos humanos.

Llosa: Além disso, a relação entre o promotor Rolf e sua mulher Sibylle é a que melhor ilustra a alienação do amor através do trabalho da civilização moderna, que é a grande acusação de No Soy Stiller. Os maridos decidem que o casamento será um relacionamento aberto e sem servidões, e que ambos manterão sua independência e liberdade. A bela teoria — como é comum acontecer — não funciona na prática. Quando Sibylle tem um amante (Stiller), Rolf sofre o impacto profundamente e, talvez pela primeira vez, descobre que ama e necessita da mulher. A traição da esposa surge como uma espécie de estratégia de Sibylle para provocar o amor de Rolf ou, em outras palavras, para animá-lo, carregá-lo de sustância e salvá-lo da rotina.


Daniela: Ah, ok. É a recorrência daquele confronto que eu não tinha feito: o comportamento do indivíduo suíço no casamento x progresso da nação suíça. Frisch usou para reforçar suas críticas, para apontar mais um aspecto ridículo do aparente progresso perfeito, mera fachada de seu país. Embora eu não tenha gostado muito desses trechos, cabe admitir que Sibylle é uma personagem muito interessante, com ótimas falas. E essa reação do Rolf, citada por você, foi mesmo hilária. “Liberdade só pra mim” é sempre um lema mais fácil de seguir, não é? (Ah!, e o apelido do Stiller, "mimosa ruminante" também é ótimo.)

Daniela:  Um breve adendo: é engraçado que Ifigênia, livro escrito pela venezuelana Teresa de la Parra (li super recentemente), também se debruça sobre a complexa "liberdade no casamento". É uma temática, de fato, instigante; principalmente nos dias atuais, quando os millennials (são eles? sei lá; haha) andam questionando bastante a famigerada monogamia e abraçando cada vez mais os relacionamentos abertos.

Daniela: E acho que é isso, sim? Mais uma vez, agradeço o tempinho dedicado para trocar uma ideia
comigo sobre literatura.


Llosa: O prazer é meu. Só queria finalizar com um breve comentário; caso me permita.


Daniela: Lógico que sim. Mande lá.


Llosa: A mera existência de um romance como No Soy Stiller contradiz a tese proposta pelo próprio livro. A atroz civilização do país onde a história acontece não deve ser tão destrutiva do espírito crítico, nem tão segregadora de um conformismo generalizado, quando nesse mesmo meio surgem contraditores tão intensos quanto Max Frisch e críticas tão duras como as desta obra. Mas quem sabe um dia virá o limbo suiço e o inferno tão desejados por pessoas como Anatol Stiller.


Daniela: Eita! Aí eu curti, haha.

Daniela: Esses nossos papos são sempre uma diversão. Obrigada, Llosa; e até o próximo livro!

16/12/2017

[alinhavando] What it feels like for a girl


Eis que uma sequência de eventos sincrônicos me obrigou a revisitar sentimentos juvenis do passado. O insight revelador dessa sincronicidade ocorreu enquanto eu escovava os cabelos na frente do espelho: meus olhos encararam atônitos suas imagens reflexas, denunciando a inequívoca e pasmada assimilação da cadeia de acontecimentos.

Difícil identificar o início, porém sei que o catalisador da constatação consciente foi a recente leitura do livro The Member of The Wedding, escrito por Carson McCullers, combinada ao contemporâneo compartilhamento no twitter de uns versinhos que escrevi aos 13 anos, durante uma aula de literatura da escola. Minha versão adolescente poeta mandou qualquer coisa deste tipo:

"Não sei quê
não sei que lá
choro pelas lágrimas
que não tenho pra chorar."
                       - Daniela C.L.(13 anos)

(Pois é.) É imperioso registrar que a inspiração para o compartilhamento dessa ~obra-prima~ naquela rede social foi justamente o poema supostamente escrito por outra pré-adolescente. Seguem os versos da Lorena  que a Lorena teria plagiado (?) do Khalil Gibran: (* Por favor, direcionem a atenção ao fato de que a reprodução pela aluna sinaliza atração pelo tema, beleza?)
O insight que tive à frente do espelho, dias após a divulgação da minha ~arte~ (ok, parei com a autodepreciação), relacionou-se à súbita percepção de que os sentimentos que fizeram meu eu pré-adolescente escrever aqueles versos foram bastante similares àqueles que exasperam Frankie Addams, a protagonista de treze anos do livro da McCullers. Desse ponto, então, levei somente míseros segundos para recordar que, poucos meses antes, eu chorava na sala de uma psiquiatra, à medida que narrava fatos que me haviam ocorrido aos treze anos - sentindo-me ridícula ao longo do processo, obviamente. Não, definitivamente não é uma etapa fácil e inofensiva da vida.

Dando continuidade à cadeia de assimilação, lembrei ademais que, além da McCullers, li em 2017 dois outros contos, escritos por Flannery O'Connor e Lucia Berlin, que igualmente exploram a louca avalanche de transformações típicas da avassaladora fase pré-adolescente. A lembrança de um conto da Katherine Mansfield lido em 2016, sobre a mesma temática, também acabou invadindo minha epifania. Nada mais justo, portanto, do que tentar estabelecer um diálogo entre esses ótimos textos, sim? Organizar as perspectivas oferecidas por essas excepcionais autoras e, quem sabe, submeter-me a uma espécie de terapia literária. The Member of the Wedding conduzirá a conversa, enquanto os demais contos - e minha própria experiência pessoal - contribuirão pontualmente ampliando as reflexões. 


De que idade estamos falando?
- The Member of the Wedding,  Carson McCullers: Frankie Addams, doze anos.
- A Temple of the Holy Ghost, Flannery O'Connor: protagonista de doze anos, sem nome.
- The Wind Blows, Katherine Mansfield: Matilda, adolescente sem idade especificada.
- Stars and Saints, Lucia Berlin: protagonista de 09 anos, inominada.
________________________________________________________
Ou seja: falamos da faixa etária típica da puberdade feminina. 


✒ Estações do ano x Pré-adolescência.
Dentre as quatro, McCullers e Mansfield são as autoras que optam por explorar essa simbologia. A escolha é interessante, se pensarmos que os gregos representavam as estações do ano através de figuras femininas e, principalmente, que o símbolo reforça a premissa de que o estado de espírito das protagonistas correspondia exatamente a uma etapa do ciclo de desenvolvimento, do ritmo de vida.

A estação escolhida, no entanto, diverge ligeiramente entre as duas escritoras: a americana opta pelo verão, enquanto a neozelandesa fica com a transição entre verão e outono. A informação é apresentada ao leitor logo no início das narrativas:
(McCullers:) "It happened that green and crazy summer when Frankie was twelve years old." 
(Mansfield:) "It is cold. Summer is over-it is autumn-everything is ugly."
Pesquisando esses símbolos no livro de Michael Ferber, A Dictionary of Literary Symbols, encontrei que o verão, no contexto da vida representada por um ano, simbolizaria precisamente a maturidade, o completo desenvolvimento dos poderes da mulher. O mesmo autor relembra que Shakespeare evoca em seus sonetos que o verão é muitas vezes desagradável por conta do excesso de calor e da ventania, o que acredito avivar metaforicamente o desconforto - físico, mental - característico da etapa puberal. 

Em relação ao outono escolhido por Mansfield, Ferber destaca tratar-se da estação em que simultaneamente celebra-se a colheita do verão e lamenta-se a proximidade do fim do ano. É, desse modo, uma estação de dupla faceta, visto que ela festeja tanto a vida, como a morte. Apropriada, parece-me, considerando-se a própria dualidade transitória "criança-mulher" presente nessa transição.  Além disso, o outono é igualmente usado como metáfora para a maturidade, como Ovídio aqui o emprega: ‘‘Then autumn follows, youth’s fine fervour spent, / Mellow and ripe, a temperate time between / Youth and old age, his temples flecked with grey’’ (Met. 15.209--11, trans. Melville). Dado que a idade da protagonista não é explicitamente relatada por Mansfield, o outono parece sugerir que ela estava completando seu ciclo, e não apenas o iniciando.


✒  Para Frankie, nem verão, nem outono; mas sim: a Estação (Temporada) dos Dias de Cão!
Exato, a querida protagonista de McCullers opta por um apelido muito mais propício para aquela maldita/bendita estação; o mesmo (origem na Grécia antiga) adotado para designar os dias mais quentes e desconfortáveis de verão.
(McCullers:) “And the season of dog days is like this: it is the time at the end of the summer when as a rule nothing can happen-but if a change does come about, that change remains until dog days are over. Things that are done are not undone and a mistake once made is not corrected.”

✒ Por falar em símbolos,
outro que chama atenção é o vento e suas variações - ventania, tornado, tempestade, ciclone -, os quais surgem intensamente no conto de Mansfield (logo no título: The Wind Blows!), mas também no romance de McCullers. Curiosamente, é um símbolo que também parece carregar dualidade: ventos são vigorosos, caóticos, potencialmente devastadores e, ao mesmo tempo, vazios e efêmeros como aquela própria etapa das vidas das protagonistas. Mansfield vale-se ainda do mar para representar a intensidade de emoções e metamorfoses por que atravessava sua personagem. 
(Mansfield:) "It is only the wind shaking the house, rattling the windows, banging a piece of iron on the roof and making her bed tremble." 
(McCullers:) "I think something is wrong. It's too quiet. I have a peculiar warning in my bones. I bet you a hundred dollars it's going to storm. A terrible terrible dog-day storm. Or maybe even a cyclone."

✒ Abruptude desnorteante.
Peço desculpas, pois optarei por apelar para aquele velho chavão: dorme-se criança e acorda-se mulher. É evidente que as mudanças não acontecem com a fugacidade que essa expressão sugere, entretanto a sensação é praticamente essa; uma vez que o tempo que nos é concedido não é, definitivamente, proporcional à extensão da metamorfose que sofremos. A despeito disso, precisamos sobreviver.

Cientes do sentimento, as autoras recorrentemente reforçam que suas personagens sentem-se tomadas de surpresa, atrapalhadas em decorrência das transformações repentinas:
(Mansfield:) "Suddenly-dreadfully-she wakes up. What has happened? Something dreadful has happened." 

(McCullers:) "One night in April, when she and her father were going to bed, he looked at her and said, all of a sudden: “Who is this great big long-legged twelve-year-old blunderbuss who still wants to sleep with her old papa?”

“And then, on the last friday of August, all this was changed: it was so sudden that Frankie puzzled the whole blank afternoon, and still she did not understand."

“It is so very queer the way it all just happened.”

“Then the spring of that year had been a long queer season. Things began to change and Frankie did not understand this change.”

✒ Então o corpo muda.
Logicamente esse território não teria como estar de fora. No caso das meninas, contudo, há uma engrenagem social que torna o fenômeno mais perverso. A menina confiante que se enxergava (inconscientemente) quase como um ser andrógino, passa a sentir com maior intensidade as pressões relacionadas às rígidas concepções sociais de como uma mulher deve se comportar e se apresentar, notadamente para tornar-se "atraente para garotos". É o terreno fértil para insegurança, baixa autoestima e ansiedade.

Frankie Adamms, aos 12 anos, já contava com 1.67m de altura, calçava sapatos de número 36 e temia o risco de seguir crescendo até virar uma girafona, o que seria péssimo, já que uma dama não pode ser um varapau, não é mesmo? A pobre garota começa a preocupar-se em aparentar seu melhor no casamento do irmão, o que implicaria, na visão dela, em longos cabelos loiros cacheados (porém ela tinha acabado de cortá-los bem curtos), muitos laçarotes, babados, perfume, sapato apertado. Enfim, somente itens que ela não estava habituada a usar, mas aos quais estaria obrigada a se adequar.
(McCullers:) "this summer she was grown so tall that she was almost a big freak, and her shoulders were narrow, her legs too long. (…) her hair had been cut like a boy's, (…) The reflection in the glass was warped and crooked, but Frankie knew well what she looked like; (...)”
É também quando certos desvios físicos são costumeiramente corrigidos. Eu, por exemplo, tive de encarar aparelhos ortodônticos horrendos; a protagonista do conto de Berlin, coletes para tratamento de escoliose.
(Lucia Berlin:) "But I had this heavy metal brace on my back, for what was called the curvature, let's face it, a hunchback, so I had to get the white blouse and plaid skirt way too big to go over it, (...)"                                 

✒ Well then, I'm a FREAK!
Essa recorrência é fascinante, dado que surge de maneira explicitamente similar nas narrativas de O'Connor e McCullers. Em determinados trechos, as respectivas protagonistas mencionam a passagem pela cidade de uma dessas feiras andarilhas de múltiplas atrações, dentre as quais havia a famigerada Tenda dos Freaks. Ainda mais assombroso é que as garotas focam suas atenções na apresentação do hermafrodita, recurso narrativo que novamente parece acentuar os conflitos internos proporcionados pelas expectativas sociais de gênero que elas subitamente precisavam enfrentar.

Certa distinção, todavia, pode ser observada na reação das duas àqueles Freaks. Frankie entra em uma espécie de pânico contido ao considerar que aquela possa ser a turma à qual ela pertence. É o pavor de também ser uma aberração digna de um show circense.
(McCullers:) “She was afraid of all the freaks, for it seemed to her that they had looked at her in a secret way and tried to connect their eyes with hers, as though to say: we know you.”
A protagonista de O'Connor, de outro lado, reagiu de modo peculiar e inesperado: ela apropria-se da resiliência contida nas palavras declaradas pelo hermafrodita para encontrar consolo para seu desespero. Eis o que disse aquele freak: (O'Connor:) This is the way He (God) wanted me to be." Quer dizer, a adolescente conseguiu usar as palavras de teor religioso para se aceitar do jeito que era. Visto que O'Connor era católica fervorosa, não surpreende.

Pessoalmente, sinto que tive uma experiência que resultou da combinação dos casos dessas duas personagens. Comigo, não houve um show de freaks, é lógico, mas uma música. Qual? Voilà, na linda versão piano + Coral Scala, só de garotas:



Quando ouvi essa música pela primeira vez (por volta dos 13-14 anos, creio), sobretudo quando pude associar aquela voz à imagem de um vocalista com pálpebra caída e dentinhos tortos, senti um grande conforto ao perceber que, afinal, eu não estava sozinha. Havia outros creeps por aí que, como eu, não sabiam o que diabos estavam fazendo nesse planeta. (- Obrigada, Thom!)


✒ Solidão, isolamento e não pertencimento.
Aqui é onde desponta aquele meu poeminha. A inspiração para aqueles versos foi esta: meu eu adolescente sentia-se excluído e acreditava (tolinha) que todas as outras garotas populares tinham vidas intensas repletas de acontecimentos, ao passo que nada acontecia comigo. Portanto, como eu poderia chorar; quer de tristeza, quer de alegria? (Rindo:) Perdão pelo tom excessivamente dramático e provavelmente piegas, porém esse é um fato inegável, ainda que embaraçoso. As personagens das obras selecionadas nesse post, além do mais, não permitem que eu minta: todas sentem uma solidão imensa, sentem-se excluídas do mundo e que não pertencem a lugar nenhum. Alguns trechos (de cortar o coração):
(Lucia Berlin:) "(...) I knew that never in my life was I going to get in. Not just fit in, get in. (...) not only unable to get in but seemingly invisible, which was a mixed blessing." 
(McCullers:) “This was the summer when for a long time she had not been a member. She belonged to no club and was a member of nothing in the world." 
“She was an I person who had to walk around and do things by herself. All other people had a we to claim, all others except her.”
No caso de Frankie Addams, McCullers é particularmente cruel, tendo em vista que, naquele verão, 1. as outras garotas não permitiram sua entrada no clube que dava festas com a presença de garotos, 2. sua melhor amiga mudara-se para outro estado, 3. seu irmão partiria de casa após o casamento iminente e 4. até seu gatinho havia fugido de casa para, pasmem, achar uma companheira (teoria da querida personagem Berenice). É demais para uma mocinha de apenas 12 anos, gente.


✒ Som e Penumbra preenchem o vazio.
Admito a possibilidade de que eu tenha viajado nessa percepção, mas a incluirei em meus registros de qualquer jeito. O'Connor e McCullers me pareceram usar penumbra e som, respectivamente, como artifícios aos quais suas protagonistas recorriam, em seus quartos, para disfarçar e/ou aplacar a solidão que as espreitava constantemente; tentativa de criar um aconchego artificial. Seguem os trechos:
(O'Connor:) "She went upstairs and paced the long bedroom (...) She didn't turn on the electric light but let the darkness collect and make the room smaller and more private." 
(McCullers:) “Frankie's room was furnished with an iron bed, a bureau, and a desk. Also Frankie had a motor wich couls be turned on and off; the motor could sharpen knives (...)"

✒ Autoestima tem, mas acabou.
Diante de tudo isso, espanta que essas moças se odiassem?
(O'Connor:) "(...) she knew she would never be a saint. She did not steal or murder but she was a born liar and slothful and she sassed her mother and was deliberately ugly to almost everybody." 
(McCullers:) “This was the summer when Frankie was sick and tired of being Frankie. She hated herself, and had become a loafer and a big no-good who hung around the summer kitchen: (...)"
Que desejassem ser um outro alguém?
(McCullers:) "I wish I was somebody else except me."

✒ Das duas, uma: ou destruição, ou reparação. 
Trata-se, digamos, da direção que o ricochete segue. Algumas garotas rebelam-se a favor da explosão e da destruição. Frankie começa a cometer pequenos furtos pela cidade, a brincar com a pistola do pai e com facas e, efetivamente, a desejar destruir tudo.
(McCullers:) “I just wish I could tear down this whole town.”
Um tipo mais ameno de ira, quase defensiva, direciona-se às garotas que mostravam-se ajustadas à vida (especialmente as mais velhas), sejam aquelas que já estavam namorando e que as excluíam da conversa, sejam as que partiam para o bullying declarado. Para nossas protagonistas, as outras garotas eram estúpidas, tolas e até chamadas de todo tipo de palavrão. Pura salvaguarda.
(O'Connor:) "The child decided, after observing them for a few hours, that they were practically morons and (...) she couldn't have inherited any of their stupidity." 
"Neither one of them could say an intelligent thing and all their sentences began, "you know this boy I know well one time he..." 
(McCullers:) "The son-of-a-bitches.”
Chutando a porta de vez, a personagem da Mansfield revolta-se contra tudo e todos.
(Mansfield:) "How hideous life is-revolting, simply revolting... (...) Go to hell", she shouts, running down the road."
A personagem da Berlin apela para o caminho oposto: empenha-se ao máximo em tentar agradar, para que, de alguma forma, seja aceita e consiga construir qualquer vínculo com alguém. Por ser mais nova, talvez? O desespero da garota é tamanho, tadinha, que ela dedica-se com afinco a agradar até o padre da Igreja Católica que ouvia sua confissão (ela era de família protestante):
(Berlin:) "Then he asked about my sins. I wasn't lying. I really and trully had no sins to confess. Not a one. I was so ashamed, surely a could think of something. Search deep into your heart, my child... Nothing. Desperate, wanting so bad to please I made one up."
Nesse ponto, Berlin acaba aproximando-se de O'Connor, considerando-se que o universo religioso também traz à sua protagonista algum tipo de alívio para toda aquela pressão. (*As coisas não dão muito certo no final, é verdade.)


✒ Metafísica e crise existencial de sobra.
Pensa que a Lorena do 4o ano B é a única a interessar-se pelo vazio? Então, pense novamente. Todas essas garotas começam a despertar para questões relacionadas à vida, ao universo e tudo mais, entretanto as respostas escapam-lhes completamente. A consequência? Medo, mais solidão e aflição existencial da boa. Seguem algumas instigantes reflexões de nossas personagens:
(Berlin:) "A lot of things were really bothering me in those days, like what gave life to the candles and where the sound came from in the desks. If everything in God's world has a soul, even the desks, since they have a voice, there must be a heaven. I couldn't go to heaven because I was Protestant. I'd have to go to limbo. I would rather have gone to hell than limbo, what an ugly word, like dumbo, or mumbo jumbo, a place without any dignity at all." 
(McCullers:) “She was afraid of these things that made her suddenly wonder who she was, and what she was going to be in the world, and why she was standing at that minute, seing a light, or listening, or staring up into the sky: alone. She was afraid, and there was a queer tightness in her chest.”

✒ Saída? Fugir!
Essa é, aparentemente, a única solução que as personagens vislumbram e a que anseiam fervorosamente. O "para onde" nem importava, mas apenas escapar do sofrimento e explorar o mundo. Retomando nosso símbolo: como conter o vento em um espaço confinado e privá-lo da liberdade de soprar pelos quatro cantos? O conto de Mansfield, por exemplo, encerra com a personagem sonhando acordada a imagem de sua fuga no navio que partia. 

Para Frankie, o fato do irmão ter passado dois anos servindo ao exército em um lugar tão pitoresco como o Alasca, acrescido das notícias provenientes de vários países durante a então corrente Segunda Guerra Mundial, intensificavam nela a noção de que havia um mundo vasto aguardando que ela o explorasse. Em algum ponto dele, com certeza ela se encontraria. 
(Mansfield:) "They are on board leaning over rail arm in arm. (...) Good-bye, little island, good-bye...(...) the ship is gone, now. 
(McCullers:) “I've been ready to leave this town so long. I wish I didn't have to come back here after the wedding. I wish I was going somewhere for good.” 

“She did not know why she was sad, but because of this peculiar sadness, she began to realize she ought to leave town. (…) but she did not know where she should go.”
**** 
Se pudesse, abraçaria todas essas personagens - e as garotas reais, de carne e osso, que agora enfrentam esse pandemônio - e lhes afirmaria que esses dias de cão eventualmente terminam. [Outros começam, é verdade, contudo reservaria a revelação desse "detalhe" para uma outra ocasião. 😉]

"(...) You are the we of me."

                                                       - Carson McCullers, The Member of the Wedding.