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26/02/2023

[autoficções #4] And I draw a line to your heart today

[*Filme: Um dia, um gato/ When the cat comes/The Cassandra Cat; Vojtěch Jasný (1963)]

Não tenho lido nada [iniciar ano com leitura sem graça dá nisso], não tenho desenhado/pintado e minha saúde já esteve melhor, porém bateu tremenda vontade de conversar. Além do mais, alguém precisa alimentar o banco de dados das I.A.'s de Texto & Imagem, confere? Post singelo, trazendo alguns desenhos/pinturas do ano passado, os quais ajudarão a puxar assunto, misturados a breves entradas diarinho, combinado? Bora lá.

💬 Eis que o tcheco Um dia, um gato/ When the cat comes, de Vojtěch Jasný, deu as caras na MUBI, e finalmente pude vê-lo — a espera valeu, gostei. Já joguei uma cena/frase excelente do filme no topo deste post, mas também preciso guardar a passagem na qual as crianças começam a pintar como imaginam (sem que o professor peça, ressalto) o gato da história que escutam; um gatinho especial que cobre os olhos com óculos escuros, a fim de não revelar as verdadeiras cores das pessoas. Caramba, lindo demais. 👇



💬 A autora japonesa Sayaka Murata concedeu uma ótima entrevista ao Louisiana Channel [link: Writer Sayaka Murata 村田沙耶香 | Louisiana Channel], e registro aqui o fascinante processo criativo compartilhado pela autora. Murata explica que, para criar suas histórias, ela desenha suas protagonistas num caderno, construindo um pequeno aquário de personagens. Colo esse achado na postagem porque ele incidentalmente se conecta belamente à elaboração criativa das crianças no filme de Jasný: elas escutam a história falada, transferindo-a em desenho no papel; enquanto Murata, por sua vez, desenha a história no papel, para então transformá-la em história escrita. Claro que não estou chorando, que ridículo seria.
"Quando escrevo romances, uso cadernos. Eu rascunho a personagem no caderno — não apenas seu rosto, mas também sua altura e roupas, para saber de onde ela vê o mundo, o lugar onde ela cresceu e viveu durante a infância. Quando termino a protagonista, desenho as personagens que a rodeiam. Enquanto as desenho e as nomeio desse modo, elas automaticamente começam a conversar entre si; daí eu escrevo as cenas. É como se eu estivesse construindo um aquário (...) onde coloco minhas personagens. (...) Em seguida, começo a mudar o mundo onde estão. Quando faço coisas diferentes, todos no aquário começam a se mover, então a história naturalmente se revela; momento em que escrevo o que observo.         
— Sayaka Murata.
P.S.: Terráqueos já está na fila para leitura em 2023, portanto Murata poderá visitar mais uma vez o blog. O Querida Konbini já rendeu post: aqui.


💬 Não lembro de que forma começou ou por que deixei acontecer, porém confesso que estou circulando por dois becos de elevada periculosidade do You Tube: os nichos das entusiastas de caneta-tinteiro e as de fotografia. Exato; necessito encontrar forças para não sucumbir, caso queira evitar irreparável e certa derrocada financeira. Quanto às canetas-tinteiros (por ora, possuo somente uma modesta Kaküno), acredito que será fácil resistir, pois me parece um hobby algo peculiar [galera da papelaria na internet se parece assustadoramente com fã de marcas (destaco algumas recorrências observadas: Superior Labor, Hobonichi, Kaweco, Sailor, TWSBI...); rolam uns papos bem bizarros, acho. Até a caligrafia da galera se torna igual; doideira], mas quanto à fotografia, receio de que não haverá remédio. Nos próximos dias, pretendo decidir e fechar a compra de uma câmera e set de lentes; a ver. Será algo de entrada e de baixo orçamento — e desejem-me sorte, pois pretendo me aventurar no AliExpress. [*Atualizando em 03/03: claro que deu ruim ao tentar comprar lá; pelo menos a merda ocorreu logo na saída. Por que insisto no erro, jesus?]  Assim, além de desenhos e pinturas ruins, possivelmente também trarei fotos de qualidade duvidosa para o blog, em futuro incerto. Yay! Anoto uns objetos de estudo que me inspiram neste projetinho de fotos: aquelas pequenas flores de mato para as quais ninguém liga, os cãezinhos e capivaras do parque, passarinhos e insetos. 


💬 Por falar #1 em fotografia e MUBI, trago esta minha pintura da cena de um filme que vi por lá (guache + aquarela):

Madeira e Água (2021), de Jonas Bak, narra a história de uma alemã viúva e aposentada que viaja à Hong Kong, durante os protestos de 2019, para visitar o filho. Adorei a delicadeza do filme; os momentos de silêncio e solidão da personagem, bem como a relação estabelecida com a paisagem por onde ela circula, me tocaram bastante. Esta pintura me ajudou a consolidar uma lição importante, explico-a rapidinho: quando comecei a desenhar/pintar e esbarrei na câmera fotográfica, paralisei porque "como diabos se desenha uma câmera fotográfica?", contudo logo me lembrei de que "calma, sem estresse; basta desenhar as formas, sombras e luzes que enxergo, e a imagem há de se materializar." E não é que se materializou legal?

E pinço um momento logo no início do filme, quando a personagem vê-se obrigada a passar a primeira noite no país num quarto de albergue. Uma jovem no beliche puxa conversa com essa senhora turista, contando-lhe as perícias de sua viagem que se encerrava naquela noite, quando então pausa e emenda tão gentil: "— Desculpe, esta é minha história. A sua está apenas começando." Quer dizer, até aqui, meu post pensa em: desenhar histórias, fotografar histórias, contar histórias, ouvir histórias, escrever histórias, viver histórias.


💬 Por falar #2 em caneta-tinteiro e MUBI, ano passado pintei uma cena do filme A Ilha de Bergman (2021), de Mia Hansen-Løve (aquarela):
 
Não consigo descrever o quanto gostei desse filme (a primeira metade, ressalvo), entretanto afirmo que, ao final, eu só queria saber de embarcar para uma ilha sueca carregando cadernos, livros e canetas-tinteiros debaixo do braço, e por lá passear de bicicleta e nadar com águas-vivas. Puxa, adoro essa diretora — ah, e a atriz, Vicky Krieps! Por sinal, devo finalizar um retrato dela que desenhei no fim do ano passado, quase pronto. 

[P.S.: é, não nego que mulheres contemplativas, olhando para o espaço (janelas!!), é um apreciado tema.]

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[ATUALIZAÇÃO 26/03/23:] Pronto, desenho da Krieps finalizado (*grafite; lápis de cor). 


***
Pera, impensável falar de águas-vivas e ilhas suecas, sem trazer de volta um de meus poemas favoritos, do sueco Tomas Tranströmer (que poeta subestimado por estas bandas brasileiras, pessoal; por quê? / *tradução: Marcia Schuback):
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[ATUALIZAÇÃO 26/03/23:] Como casa com o tema, colarei esta pintura que também finalizei agora, usando como referência a imagem de um mini vídeo publicado no Instagram pelo artista Scott Campbell [era a visita da filha dele (creio) ao Aquário Nacional de Baltimore.] (*guache)
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E que coincidência!: vejo que uma artista de São Francisco, que comecei a acompanhar faz pouco tempo no You Tube (Christina Kent), acaba de postar um breve vídeo no qual pinta in loco a ilha de Alcatraz. Putz, é totalmente meu tipo de rolê, queria demais. Ilhas são realmente paisagens especiais, não tem jeito. Felizmente, já tive oportunidade de visitar a ilha de Alcatraz e fiquei absolutamente encantada com o lugar, o que me desconcertou um pouco, dado seu peso histórico. No entanto, o livro Slouching Towards Bethlehem Rastejando até Belém, de Joan Didion, inclui um texto que me apaziguou os sentimentos, pois Didion assegura que, por mais que ela própria tente imaginar aquele espaço como a prisão que um dia foi, não consegue desgostar dali. Trago trechinho do que ela escreveu, anotado com carinho num de meus cadernos:

 

"It is not an unpleasant place to be, out there on Alcatraz with only the flowers and the wind and a bell busy moaning and the tide surging through the Golden Gate (...) I liked it out there, a ruin devoid of human vanities, clean of human illusions, (...) I came back because I had promises to keep, but maybe it was because nobody asked me to stay."  — Joan Didion. 


Ok, talvez uma visita à ilha de Fårö seja muito complicada (será? caro, com toda certeza seria), enquanto uma revisita à Alcatraz seja mais factível? Por enquanto, retornemos via foto:
(*apaixonada pela gaivota lá atrás, inspecionando o que eu aprontava com malabarismos, para me fotografar sem ajuda.)


💬 Voltarei à MUBI [juro que este post não é patrocinado, mas, hey, fico à disposição da plataforma] para fixar no blog outra bela passagem de filme envolvendo desenhos. Na obra Il Buco (2021), de Michelangelo Frammartino, nada acontece, a paisagem é absurdamente linda e o silêncio prevalece (ou seja, lógico que amei). Acompanhamos a expedição do Grupo Espeleológico do Piemonte, ocorrida em agosto de 1961, o qual se dirigiu ao sul da Itália (Calábria) para explorar a caverna do Abismo Bifurto, então desconhecida. Em paralelo aos trabalhos da equipe, há cenas de um aldeão que pastoreia a região (ator? suspeito de que seja um local escalado pelo diretor), um senhor com uma mirada super intensa (sério, ele está fantástico em cena). Daí, dentre os membros do grupo, há um cartógrafo que, à medida que a exploração avança, desenha o mapa da caverna. As cenas nas quais o pesquisador trabalha no mapa, usando nanquim e bico de pena, paralelamente ao que vemos ocorrer com o aldeão e à própria paisagem italiana, é lindo, lindo, lindo. Depois desse, Frammartino é outro diretor que entrou no peito, sem dúvidas, pois também aprecio o Le Quattro Volte (2010).

Inclusive, que parceria espetacular, não? Cavernas e Ilhas. Sim, colocarei esses elementos no meu hipotético aquário criativo — ao lado das canetas-tinteiros, máquinas fotográficas, frascos de tinta, águas-vivas e gatinhos de óculos escuros. Está ficando bonito.

(ah, este fundo cego... o percurso na caverna: everything was beautiful, and nothing hurt.)


💬 Para não dizer que não estou lendo nada, vale comentar brevemente que leio (aos pouquinhos, com calma) a coletânea de cartas que Van Gogh escreveu ao irmão Théo (dívida antiga minha). Estou radiante por me deparar com comentários tão ricos, generosos e honestos de Van Gogh acerca de seu processo criativo e de sua própria formação artística — que material valioso são estas cartas; e o quanto desmistifica a ideia de genialidade mágica. Reservarei impressões mais detalhadas para um possível post futuro (há tanto por falar), contudo, dado que minha pintura anterior do A Ilha de Bergman foi feita com aquarela, é imperioso destacar o quanto me satisfez ver Van Gogh corroborar que aquarela é coisa do diabo ("A aquarela é algo diabólico." - tradução: Pierre Ruprecht). Puta material desgraçado sim. Tenho curtido bem mais o guache e já investi numas tintas de cores primárias da Royal Talens (porém os vidrinhos são tão lindos, que persisto com pena de usar; daí continuo brincando com o baratinho HIMI).

"(...) a aquarela exige uma grande habilidade e uma grande rapidez no trabalho. Deve-se trabalhar no material meio úmido para obter harmonia, e não há muito tempo para pensar. Trata-se, portanto, não de trabalhar fragmentadamente, e sim de esboçar quase de um só golpe só (...)"       

                                                                                 — Van Gogh.

 


💬 Outro filme que invadiu minhas pinturas do ano passado foi Holy Motors (2012), do Carax (guache):

Visto que os filmes prévios do Carax aos quais assisti não me deixaram extasiada, me surpreendi um bocado com o quanto amei esse filme. Dane-se, tascarei um perfeito — poxa, tem tudo que valorizo: boas atuações, silêncios, é engraçado e triste na medida (piada discreta com assunto tabu? sou a favor; melancolia infinita? principalmente), sem pé nem cabeça, e ao mesmo tempo possui todo o sentido para instigar reflexões complexas; e tudo isso sem se levar a sério. No meu dicionário, é perfeito mesmo. Inclusive, percebi que o grande equívoco de Carax no filme Annette (2021) foi não ter escalado Denis Lavant para o papel do protagonista (perdão aí, Adam Driver).  AH! Não posso deixar de comentar: vi graças à plataforma Cine Sesc Digital; tremenda iniciativa massa.

Para encerrar estes devaneios, escolho transcrever a resposta da personagem de Lavant à pergunta acerca do motivo que a faz prosseguir fazendo o que faz. Trago a frase porque, em parte, ela ajuda a justificar minha dedicação a este humilde e inconsequente blog em pleno 2023, ano em que apenas robôs de I.A. e de indexação leem coisas na internet. [Suponho, a propósito, que seja a mesma razão por que Carax prossegue fazendo seus filmes. E que bom.]
"— O que me motiva desde o início: a beleza do gesto."
(guache - minha pinturinha de 2022 que mais curti. This is the way, I guess)

19/06/2022

That old convenience store, those tired faces and those haunted eyes

Durante a ronda por dramas coreanos à qual me dediquei ano passado, diversas foram as obras malogradas, dentre as quais consta Loucos um pelo Outro. Embora eu não tenha sido capaz de sequer finalizar o primeiro episódio, houve uma passagem específica da série que me tocou bastante. Falo da sequência em que o protagonista, um policial afastado do trabalho em decorrência de transtorno explosivo intermitente, janta lámen industrializado (tipo cup noodles®) harmonizado com uma garrafa de coca-cola, numa loja de conveniência. Ah, e sozinho. Bicho, conjecturei que aquela possivelmente seria uma das cenas mais deprimentes já concebidas pela dramaturgia coreana. Enquanto tentava entender a razão de meu desassossego diante daquilo, imagino ter sido abençoada por uma feliz epifania: mas, ora, se não é praticamente uma versão do quadro Automat, de Edward Hopper?! Entretanto elementos mal explicados persistiam, sobretudo porque — conforme Alain de Botton também reconhece num artigo para o site do Tate Museum—, os quadros de Hopper não me despertam tristeza/melancolia, ao passo que a imagem coreana me pôs num estado de franco desamparo. Naquele mesmo texto, Botton assinala pontos a respeito de Automat que me auxiliarão a delimitar divergências entre o quadro de Hopper e o de Loucos um pelo outro (*tradução livre por minha conta):

(1) Botton: "A mulher aparenta estar autoconsciente e ligeiramente amedrontada, mal acostumada em estar sozinha num espaço público. Algo parece ter dado errado."
Exato! O quadro coreano, em contrapartida, é tomado por uma normalidade acachapante. Aquele homem aparenta estar super bem acostumado à solidão, e aquela parece ser apenas mais uma das várias noites monótonas de sua vida banal.

(2) Botton: "Ela involuntariamente convida o observador a imaginar histórias para ela, histórias de traição ou perda."
E o policial coreano? Para que perder tempo imaginando alguma história para aquele homem, quando a situação sugere ser a mesma velha história mundana de tantos? (Vixe, acho que estou pegando pesado com o cara.)

(3) Botton: "A despeito da austeridade dos móveis, o espaço em si não aparenta desolação".
Poxa, essa é a descrição oposta de uma loja de conveniência! — na minha opinião, veja bem. Móveis sem personalidade, mesas rodeadas por prateleiras entupidas de quinquilharias, e o horror supremo: a nauseabunda luz branca fluorescente. Botton também ressalta o espaço bastante iluminado de Automat, mas defendo que estamos lidando com luzes distintas. Sinto que a luz noturna de Hopper preserva o calor da marcante luz solar presente em suas imagens diurnas, estando assim muito distante da frieza com que a luz branca afoga aquele que faz uma refeição numa loja de conveniência. [A propósito, que conceito, comer dentro de um quadrangular aquário branco.]

(4) Botton: "Outros podem estar sozinhos naquele espaço, homens e mulheres bebendo café sozinhos, igualmente perdidos em pensamentos, igualmente distanciados da sociedade."
Aí que está: o telespectador sabe que o policial é a única pessoa (excluindo-se a funcionária) a habitar aquele recinto. E ele não está bebendo um café fresco preparado com grãos de qualidade. Ele é um adulto se entupindo de miojo e refrigerante. "Distanciado da sociedade", ele com certeza está; neste ponto temos realmente um encontro entre as imagens de Hopper e a do drama coreano. 

(5) Botton: "Hopper nos convida a sentir empatia pela mulher em seu isolamento".
Embora eu não possa falar por todos os telespectadores, afirmo que aquela foi a cena que me afugentou em definitivo da série, a gota d'água. E, dado que me esforço em praticar a máxima honestidade (razoável) neste blog, nem esconderei que pode ter ocorrido comigo o mesmo que a Freud e seu reflexo no vidro do trem — o tal sobressalto provocado pelo estranho familiar. 

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Quando já tinha me esquecido desses pensamentos, eis que um livro coreano me empurrou novamente para dentro de uma loja de conveniência. E o desconcerto, meus amigos, nem conto. Ou melhor, conto sim (na tentativa de entender).

No adorável** No One Writes Back [(~Ninguém escreve de volta), tradução coreano → inglês: Jung Yewon], a autora Jang Eun-jin me apresentou a Jihun, um rapaz que abandonou tudo para viajar pelo país apenas com uma mochila nas costas, um livro, um tocador de mp3 (a obra é de 2013) e um cachorro cego. Em suas andanças pela Coreia, Jihun mostra-se aberto a conhecer pessoas e, quando retornava aos diferentes motéis onde passava as noites, sentia prazer em escrever cartas para alguma delas. Pois imaginem meu susto quando o viajante me contou a história do Número 56 (Jihun preferia números a nomes), o homem em situação de rua que, numa loja de conveniência, disparou-lhe a pergunta: "Quando uma loja de conveniência mais se parece com uma loja conveniente?" Jihun, um tanto surpreso pela inesperada pergunta, responde que é quando ela convenientemente atende às suas necessidades prementes (imaginação passou longe, tadinho). Após recuperar-se do espanto de ter sua pergunta respondida pela primeira vez, Número 56 diz que Jihun está errado, pois uma loja de conveniência mais se parece com uma loja conveniente quando comemos cup noodles. Nem preciso dizer o quão abismada fiquei, preciso? Enfim, Número 56 seguiu explicando suas ideias a Jihun (e pra mim):
"Sem cup noodles, uma loja de conveniência nada mais é do que um cadáver. Não é fantástico? Você paga pelo cup noodles, eles nos dão água quente e uma cadeira de graça; e ainda nos permitem jogar fora o lixo depois que terminamos de comer. Não entendo as pessoas que comem cup noodles em casa. Isso vai contra o motivo do cup noodles existir. Às vezes desejo que as lojas de conveniência vendessem apenas cup noodles. Eu como cup noodles quase todo dia. Eles são baratos, fáceis de preparar e gostosos."

                                                                 —  Jang Eun-jin, No one writes back (아무도 편지하지 않다)

Ainda mais surpreendente é a complementação de 56, segundo a qual a grande variedade de sabores de miojo é outra grande vantagem, pois quando opções lhe são oferecidas, ele não se sente humilhado. Olha, quando li essa passagem, o piso sob meus pés desapareceu e eu retornei flutuando àquelas reflexões propiciadas pela cena de Loucos um pelo Outro, atordoada e sem mais saber o que pensar. O Jihun, por sua vez, me contou que, depois do encontro com o Número 56, nunca mais comeu cup noodles nos motéis, me garantindo que miojo é muito mais saboroso quando degustado numa loja de conveniência, aquecendo-nos por dentro. Talvez Jihun esteja certo, digo, é provável que minha forte reação negativa à cena do k-drama resulte do simples fato de eu nunca ter comido cup noodles numa loja de conveniência. 

Como se isso tudo não bastasse, a narrativa de Eun-jin ainda tem a manha de incluir Edward Hopper na conversa. Um dos motéis pelos quais Jihun passa tem quartos temáticos de pintores, sendo-lhe reservado o quarto de Hopper, porque teria sido o artista que entende como viajantes se sentem. Enquanto observa as pinturas de Hopper nas paredes do quarto do motel, Jihun se dá conta de que Hopper pintou cidades reais. Não importava quantas pessoas cruzassem o caminho de Jihun na viagem; ele sempre enxergava uma mesma pessoa, aquele indivíduo com a mesma postura e expressão de rosto, que sempre olha em direção oposta: através da janela, para um livro, para uma xícara de café ou a si mesmo. Naquela viagem, Jihun se deu conta de que a verdadeira solidão ocorre quando estamos acompanhados. 

** = então agora sou a leitora que diz que um livro é adorável... Meu deus, a idade está me transformando num monstro. 
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Após toda esta minha conversa fiada, talvez fique difícil acreditar que decidi ler o livro de Sayaka Murata com a inocência de que ele não me faria regressar às benditas lojas de conveniência, mas asseguro que assim foi. Os comentários de leitores com os quais eu havia esbarrado a respeito de Convenience Store Woman / Querida Konbini  [コンビニ人間 (Konbini ningen)]  me induziram a antecipar uma narrativa que meramente abordaria o direito, digamos, de uma mulher resolve viver toda uma vida como funcionária de loja de conveniência e, puxa vida, ser plenamente feliz. Lida a obra, desabafo: que baita brisa errada. Na verdade, Sayaka Murata desenvolve uma narrativa bem mais complexa do que isso, a tal ponto que até agora (semanas após finalização da leitura), nem sei ao certo o que a autora pretendeu dizer com essa história —  por sinal, diria que aí está o maior mérito da obra, que é do tipo cada leitor que pense o que quiser. Bom, só sei que gostei, e muito. Ah, e sim, a autora japonesa teve a proeza de me conduzir por corredores de lojas de conveniência inexplorados por mim. [*Uma ressalva: li a tradução para o inglês, feita por Ginny Takemori, cujos trechos traduzirei livremente aqui.]

Para começar, achei engraçado me deparar com um breve diálogo que oferece mais uma resposta àquela pergunta do Número 56:
"(...) estaremos abertos 24 horas, sete dias da semana, ano após ano. Por favor, venha e compre aqui à sua conveniência. 
"Uau, vocês abrem à noite também? E cedo pela manhã?"
"Sim", eu respondi.
"Mas que conveniente!"
Embora Keiko Furukura (a protagonista) confirme aquele meu prévio comentário sobre a normalidade opressora dessas lojas, a personagem igualmente me alerta que esse raciocínio é provavelmente mais intricado do que eu presumira. Veja, de fato a personagem me afirma que a loja de conveniência é um ambiente forçadamente normalizado no qual qualquer matéria estranha é eliminada ou imediatamente corrigida, mas simultaneamente ela assevera que só conseguia ser uma pessoa ordinária e normal enquanto trabalhava na loja — fora dali, Furukura me diz que é uma aberração inútil rejeitada pela sociedade. Ou seja, a menos que eu esteja doida (opa, como não?), o discurso da personagem deixa subentendido que lojas de conveniências nada mais são do que um microcosmo da sociedade, com uma diferença crucial: ali, há um manual; as regras são explícitas, claras e simples, fáceis de serem seguidas até mesmo por uma pessoa "esquisita" feito Furukura. A propósito, suponho que essas mesmas reflexões da protagonista também acabam propondo uma explicação à sensação de acolhimento e aconchego sentida pelo Número 56, um homem em situação de rua. Por tudo isso, acho que me flagrei numa situação à la "o ovo ou a galinha": foi a cena na loja de conveniência que me deixou deprimida ou eu já estava deprimida sem nem perceber? Esse salto nos meus desvarios fez sentido?
"O mundo normal não tem espaço para exceções e sempre elimina calmamente os objetos estranhos. Então é por isso que preciso ser curada. A menos que eu me cure, as pessoas normais me expurgarão. 
(...)
Quando abro a porta, a caixa vivamente iluminada me espera—um mundo confiável, normal, que segue girando. Eu tenho fé no mundo dentro da caixa preenchida de luz."
Prosseguindo com o exercício de honestidade, reconheço que a carapuça do preconceito com a qual a narrativa veste a personagem Shiraha (e vários funcionários da loja, curiosamente) possa me servir. Tal qual Shiraha, é plausível que minha aversão àquela cena de Loucos um pelo outro decorra da habitual associação de lojas de conveniência a pessoas fracassadas, os tais objetos estranhos citados por Keiko e rejeitados pela sociedade. Inclusive, uma aversão intensificada pela plena ciência de que eu própria engrosso a massa de losers do mundo. Quer dizer, trata-se realmente do spoiler que dei no início do post: a experiência do estranho familiar.

Por fim, é mandatório inserir o miojo nesses desvarios, pois ele é peça chave do pathos da cena coreana. Bem, Keiko Furukura compartilha que a conexão dela com a loja de conveniência era tamanha, que todas suas refeições consistiam em comidas lá vendidas, razão porque ela acreditava que seu corpo, uma vez constituído pela comida da loja, a tornava parte integrante da loja de conveniência tanto quanto a máquina de café e as prateleiras de revistas. (*Tenso*) Posto isto; calculo então que Número 56 está certo ao defender que o cup noodles é o que torna conveniente a loja de conveniência; afinal o cup noodles é parte integrante da loja; em outras palavras, são indissociáveis. [*Certo; confesso: a garrafa de coca-cola é o que representa, na realidade, minha piéce-de resistance na cena, visto que sou uma inveterada viciada na maldita bebida.] 

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Naquele artigo do Tate, Alain de Botton teoriza que restaurantes de beira de estrada, cafeterias noturnas, lobbies de hotéis [acrescentarei: e lojas de conveniência?] serviriam de espaços onde podemos diluir a sensação de isolamento e redescobrir um particular sentimento de comunidade — para Kieko Furukura, a loja funciona exatamente dessa maneira, por mais paradoxal que soe. Segundo o autor francês, seria mais fácil dar vazão à tristeza nesses ambientes desprovidos da sensação de lar — com suas luzes intensas e móveis estéreis —, os quais assumiriam a função de santuários àqueles que falharam em encontrar um lugar para si no mundo ordinário. É, talvez eu deva mesmo seguir o conselho do Número 56 e parar de comer meu miojo com coca-cola em casa.

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***O pior? Isto nem foi um #publipost.