10/02/2016

Guerra e Paz - Liev Tolstói / Diário de Leitura #01

Em 2016, leio Guerra e Paz pela primeira vez e registro aqui um diário de leitura com postagens para cada uma das partes dos quatro tomos e epílogo.

Postagens:


Tomo 1 - Primeira Parte

↪ Certo, o ponto de partida da história é 1805, a se qual inicia com o discurso em francês de uma russa da alta sociedade - Anna Pávlovna Scherer -, no qual ela acusa Napoleão Bonaparte de ser o Anticristo (!). Ok, pode até não ser um "Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira", mas já sinaliza bem onde estou me metendo. 

Aliás, o início do livro dar-se em francês é bastante significativo e, de certo modo, irônico, dado o iminente embate bélico entre Rússia e França. Segundo a narrativa de Tolstói, é possível deduzir que o francês era praticamente uma segunda (primeira?!) língua oficial do país, pelo menos entre os integrantes da alta sociedade. Até cartas informais, para amigos íntimos, eles escreviam integralmente em francês.  

↪ Essa questão do francês é tão relevante no livro, que ela presta-se inclusive para que Tolstói trace o perfil de uma das personagens ao leitor. Hippolyte, o sujeito cujo "(...) rosto era ensombrecido por um idiotismo e exprimia, de forma constante, um azedume presunçoso, (...)" era o indivíduo que, conforme nos esclarece Rubens Figueiredo em uma nota de rodapé, trocava as palavras em francês e que "(...) começou a falar em russo tal como o pronunciam os franceses depois de viver um ano na Rússia." Ou seja, o modo com que Hippolyte falava mal o francês nos permite concluir que ele era, basicamente, um babaca presunçoso. 

↪ "E falando em sociedade russa" no. 1...: Esse livro parece trazer uma das maiores quantidades de personagens por página quadrada. Apesar disso, não estou tendo (ainda) dificuldades em me situar entre elas; porém já aviso que não me sentirei culpada caso eu troque as bolas, visto que nem mesmo as próprias personagens conseguem se situar:
  "- O senhor está enganado (...). Sou Boris, filho da princesa Anna Mikháilovna Drubetskaia. O Rotsóv pai se chama Iliá, mas o filho se chama Nikolai. E eu não conheço nenhuma madame Jacquot.
    Pierre sacudiu os braços e a cabeça como se mosquitos ou abelhas o tivessem atacado.
    - Ah, mas o que é isso? Confundi tudo. Há tantos parentes em Moscou!"
↪ "E falando em sociedade russa" no. 2...: Como é que esses russos aguentavam fazer tanto social? Todo dia era uma festinha, um bailinho, uma visitinha, um jantarzinho, um.... Só de ler, eu fico bastante aflita. Fora o climinha esperto de puro disse-me-disse.
"- Nós, aqui em Moscou, andamos mais ocupados com jantares e mexericos do que com política. (...) Moscou está ocupada, acima de tudo, com mexericos - prosseguiu."
↪ "E falando em sociedade russa" no. 3...: Por lá, naquela época, as coisas não eram em nada diferentes ao que vale até hoje: o Q.I. — não, claro que não falo do quociente de inteligência; eu falo do "Quem Indique" — sempre tratado a peso de ouro, pois é o que faz a roda girar na sociedade, coleguinhas.
"A influência na sociedade é um capital que é preciso poupar, para que ele não acabe. O príncipe Vassíli sabia disso e, assim que se deu conta de que se começasse a pedir por todos os que lhe pediam em pouco tempo não poderia mais pedir por si mesmo, raramente fazia uso da sua influência."
↪ "E falando em sociedade russa" no. 4..: As ocupações da moda para a alta sociedade eram três: funcionário público, diplomata ou militar. Ok.

↪ "E falando em sociedade russa" no. 5...: Quando o assunto é zoeira alcoólica, os russos deixam até brasileiros no chinelo. O nível da brincadeira dos rapazes, na minha opinião, era hardcore; tipo:

     - apostar quem seria capaz de entornar uma garrafa de rum e sentar na janela do terceiro andar com as pernas para fora?!
      - amarrar um inspetor nas costas de um urso e soltar o bicho nadando em um canal?!
~ô loco, meu.~

↪ "E falando em sociedade russa" no. 6...: Aaaaah, o casamento... Se até hoje ainda não tornou-se uma instituição totalmente falida, imagine então naquela época.
"(...) o casamento, a meu ver, é uma instituição divina à qual é preciso conformar-se."
A julgar pelo modo com que o jovem príncipe Andrei Bolkónski trata a esposa, os homens também não escapavam à obrigação social do casamento. Da maneira com que Tolstói descreve, inclusive; a impressão que fica é que o príncipe 1. ou casou-se por conta de uma arma apontada para sua cabeça, ou 2. acordou um belo dia como o Gregor Samsa - "...ao despertar de um sonho inquieto, descobriu-se em sua cama casado com uma enfadonha e bigoduda esposa."

↪ Aliás, vamos aproveitar para dar uma espiada no que andavam falando sobre nós, mulheres? Só coisa fina:
(1) 
"(...) É uma dessas raras mulheres com quem podemos ficar tranquilos quanto à nossa honra; (...)"

(2) 
"Mas amarrar-se a uma mulher e, como um condenado preso em grilhões, vai perder toda a liberdade. E tudo o que houver de força e de esperança, tudo será só um peso (...). Salões, mexericos, bailes, vaidade, futilidade...eis o círculo vicioso do qual não consigo sair."

(3)
"Meu pai tem razão. Egoismo, vaidade, estupidez, futilidade em tudo: isso são as mulheres, quando se revelam por inteiro, tais como são. Quando a gente as observa na sociedade, parece existir alguma coisa, mas não há nada, nada, nada!"

(4)
"E as duas vão falar até não poder mais. Isso é coisa de mulher."

(5)
"- Mau negócio, hein?
- O quê, meu pai?
- A esposa! (...) não há nada a fazer (...). São todas assim."

↪ Mãããs... Algo que achei bem legal e interessante nessa primeira parte foi a sinalização de que Tolstói talvez explorará, sob uma perspectiva bastante positiva, diferentes relações de forte amizade entre mulheres: 1. Condessa Rostóv x Anna Mikháilovna, 2. Natália x Sônia, 3. Mariá x Julie.
"Choravam porque eram amigas; e porque eram boas; e porque, amigas de juventude, tinham de se preocupar com aquele assunto vulgar - o dinheiro; e porque sua mocidade já tinha passado...Mas as lágrimas das duas lhes eram agradáveis..."
Essa passagem acabou me dando até uma ideia para nome de banda (se eu tivesse uma): Russian Girlmance.

↪ Até este ponto, a obra de Tolstói indica que focará sua narrativa especialmente na juventude da Rússia da época, e, claro, nos impactos que o confronto com a França causará sobre ela — praticamente todos os núcleos familiares da história cedem uma de suas jovens figuras à guerra. Retomando-se os perfis traçados, constatamos, então, que a Rússia estava mandando para a guerra, por exemplo, 1. jovens capazes de amarrar inspetores a ursos e 2. jovens que apenas fugiam da vida matrimonial fracassada. Vai dar super certo, né?

Também por essa razão, achei que esse início evocou, com as devidas proporções e ressalvas, o livro Pais e Filhos, do Turguêniev.
"(...) e ali Pierre se deteve, esperando uma oportunidade para expressar seus pensamentos, como os jovens gostam de fazer." 
"(...), a ingenuidade do seu egoísmo de jovem era tão flagrante que ele desarmava os seus ouvintes." 
↪ Para leitores do século XXI, este comentário do príncipe Nikolai Andréievitch Bolkónski a respeito dos alemães é de causar arrepios:
"Além do mais, começou atacando os alemães. Só os preguiçosos não vencem os alemães. Desde que o mundo é mundo, todos vencem os alemães. E eles não vencem ninguém. Só vencem uns aos outros."
↪ Mária, me perdoa, mas te achei um tantinho chata, sabe
"(...) parece-me inútil ocupar-se com uma leitura ininteligível (...) Vamos ler os apóstolos e o evangelho (...) devemos nos persuadir de que quanto menos dermos asas ao nosso fraco espírito humano, mais agradável será para Deus, que rejeita toda ciência que não venha dele; quanto menos tentarmos nos aprofundar naquilo que Ele houve por bem esconder da nossa consciência, tanto mais cedo Ele nos concederá a descoberta por meio do seu espírito divino."
Será que esse pensamento já espelha o de Tolstói na época? Até onde eu saiba, ele foi um cristão fervoroso.

"- Se todos fossem para a guerra só por causa de suas convicções, não haveria guerras - disse.
- E isso seria maravilhoso - disse Pierre."

03/01/2016

The lonely passion of Judith Hearne - Brian Moore

Não sei de onde vêm todas as lonely people, mas já tenho a resposta (objetiva) sobre uma delas: segundo o Brian Moore, a Judith Hearne vem da Irlanda. Sem que eu planejasse, essa acabou sendo a segunda leitura do ano envolvendo a história de uma ~solteirona~ (spinster); porém creio que a trilha sonora que elegi para cada uma delas deixa claro como as abordagens de ambos os livros são diferentes. Enquanto o livro da Barbara Pym ganhou a música Spinster, da Joan Jett; o do Moore ficou com Eleanor Rigby, dos Beatles. De forma explícita: o que o Excellent Women tem de cômico e irônico, o The Lonely Passion of Judith Hearne tem de triste e depressivo.

Judith Hearne não está simplesmente solteira; mas sim completa e desconsoladamente solitária. Essa constatação torna-se ainda mais dramática ao leitor porque o encontro com a personagem ocorre no momento em que ela se dá conta de que "vai ser só aquilo mesmo"; de que não adianta mais iludir-se com falsas fantasias e esperanças sobre uma reviravolta miraculosa na vida. Também especialmente cruéis são os breves trechos em que o autor muda o foco narrativo para o ponto de vista das personagens que orbitam a vida de Judith, pois, diante do que lemos, somos cerceados do direito de supor que Judith estava sendo exagerada ou melodramática; quero dizer, o autor remove quaisquer margens para o discurso "calma, amiga, também não é para tanto." Era para tanto, sim, pois absolutamente ninguém dava a mínima pra ela. E caso a intenção da pergunta do Paul McCartney seja mais subjetiva - "Como tornaram-se tão sozinhas? Quais as conjunturas?" -, também não há problemas, pois Moore não nos deixa no escuro e delineia muitíssimo bem os percursos que levaram Hearne àquela situação. 

Em tal circunstância, ela, uma mulher criada como parte da minoria católica da Irlanda do Norte, começa também a questionar aquele Deus a quem sempre seguiu fervorosamente. Tantas regras, tantos mandamentos, tantos sacrifícios... Em troca de quê? Judith pergunta-se e não encontra nenhuma resposta — quer dizer, até ele parecia abandoná-la. De fato, o autor explora e, de certo modo, impõe questionamentos acerca do binômio "culpa/pecado" sobre o qual essa religião é construída.

Por ter provocado um momento de memória involuntária, uma cena foi particularmente enternecedora:
"Quickly, Father Quigley strode past the line of boys and reached his half-door...looked the line of little girls. (...) Didn't she know these were children's confession? (...) Penance-giver, he prepared for the penance of listening. (...) He shot the little slot open with a plock! on the first quivering boy who waited in the darkness on his knees, his small story rehearsing in his mind."
... Minha primeira confissão católica, antes da minha primeira comunhão!... Ao ler essa passagem, fui catapultada para o instante do passado: a pequena capela da escola católica apinhada de outras crianças, minhas mãos suando frio e eu de-ses-pe-ra-da a respeito do que diabos (ops!) deveria dizer pro padre. Eu tinha, afinal, pecado? Como? Quando? Por quê? Enfim... 

Moore tem uma prosa bem enxuta e direta, porém extremamente eficaz em transmitir a dimensão avassaladora do desalento pelo qual Judith passava. Sério, o livro é muito, muito triste mesmo, mas exatamente por isso achei tão bom.