01/02/2017

[DL #03] Middlemarch - George Eliot (Mary Ann Evans)

Em 2016, inicio a leitura de Middlemarch pela primeira vez e tento registrar aqui um diário de leitura com possíveis postagens para cada um dos oito livros que compõem a obra. Não li previamente nada sobre o livro e desconheço quase tudo sobre ele.

Edições adotadas: 

LIVRO 03
Waiting for Death


✒ Quando avistei o título do Livro 3, confesso que, a despeito da quantidade enorme de personagens presentes em Middlemarch (e continuam aparecendo mais!), fiquei aflita pela possibilidade de já ter de despedir-me de alguém - quem?! Ciente dessa provocação que o "Waiting for death" causaria nos leitores, Eliot decide ser ainda mais perversamente ardilosa, arquitetando uma série de personagens adoecendo sequencialmente. É o Bolão da Morte em Middlemarch!

Fred Vincy com febre tifoide - "Eita, ele é um porre, mas tão novo para morrer...";
↓ daí
 Mr. Casaubon com angina (acho) - "Ah, então é ele? Ok.";
↓ daí
Mr. Featherstone nos últimos suspiros - "Xi, É ELE!".

E a gaiatice da narrativa não parou aí, pois ela logo revela o deboche implícito no título "Waiting for death / À espera da morte": quem aguarda a visita da Inevitável não é uma personagem doente, mas os urubus da família do futuro morto, ansiosos para finalmente abocanhar a carniça herança. Que cena tragicômica, todos os parentes e aparentados do Mr. Featherstone - os ricos e os pobres; de perto e de longe - batendo ponto diariamente na casa do moribundo, para tentar garantir uma vaga final no testamento.

"The troublesome ones in a family 
are usually either the wits or the idiots."

Resta, porém, descobrir o(s) nome(s) do(s, a, as) herdeiro(os, a, as) do falecido Mr. Featherstone (R.I.P.), o que talvez não será tão fácil, visto que o camarada complicou a treta deixando dois testamentos; o "último" e o "último versão definitiva the final countdown." Torço para que a grana vá para a Mary Garth, mas suspeito de que o bocó Fred Vincy levará essa para... Adivinha? Conseguir casar com a Mary! Será? Essa é minha aposta, especialmente considerando-se minha nova hipótese para um outro possível tema desse livro.


✒ No DL#02, comecei a especular a respeito de temáticas subjacentes que estariam sendo exploradas pela Eliot e presumo que o Livro 3 ofereceu-me sinais mais claros sobre uma outra: o "Casamento", particularmente sob a perspectiva da jovem esposa provinciana.

Eis que já contamos com os seguintes power couples:
- Mrs. Dorothea Casaubon + Mr. Casaubon;
- Miss Rosamond Vincy + Mr. Lydgate;
- Miss Celia Brooke + Mr. Chettam;
- Miss Mary Garth + Mr. Fred Vincy ??? - Bem, há indícios de que serão um casal, mesmo com a negativa firme da Mary. Ou não? Veremos.

A narrativa insinua que essas moças fizeram/farão cagadas monumentais durante a escolha de seus maridos, todas ludibriadas por suas próprias suposições ingênuas, equivocadas e/ou precipitadas. Como bem lembra nosso narrador, com ar fatalista:
"In all failures, the beginning is certainly the half of the whole."
Lamentavelmente, parece que a regra será a da constatação tarde demais do vacilo. Sendo assim, tenho a impressão de que o livro me agraciará com um grupo de pobres mulheres infelizes no matrimônio, cada uma à sua maneira, ao lado de maridos medíocres. Será?


Retomando cada um daqueles casais:
(1) Mrs. Dorothea Casaubon + Mr. Casaubon
Nossa, está bem penoso acompanhar a tragédia em que transformou-se a vida de Dodo. Retornando a Lowick depois da lua-de-mel, ela não consegue mais enxergar a velha propriedade carcomida com o mesmo encanto promissor de quando a conhecera enquanto noiva.

No DL#01, registrei que a história da tia de Mr. Casaubon, a Julia (avó de Ladislaw) envolvida em um tal "~mau casamento~", pareceu-me bastante suspeita para fins da narrativa e vejo que acertei. Agora, Dorothea olha para o quadro da Aunt Julia buscando o acolhimento de alguém que supostamente a entenderia como ninguém mais seria capaz.
"(...) the miniature of (...) aunt Julia, who made the unfortunate marriage. Dorothea could fancy that it was alive now (...). Was it only her friends who thought her marriage unfortunate? or did she herself find it out to be a mistake, and taste the salt bitterness of her tears in the merciful silence of the night? What breadths of experience Dorothea seemed to have passed over since she first looked at this miniature. She felt a new companionship with it, (...) Here was a woman who had known some difficulty about marriage."
Agravando a lastimosa situação, o piripaque de Mr. Casaubon veio apenas para jogar a pá de cal sobre as esperanças de Dodo, visto que a prescrição de Lydgate ao seu esposo consistia em menos trabalho e mais repouso. Foi doloroso vê-la suplicando à Lydgate que ajudasse Mr. Casaubon, quando eu (leitora) e o médico podíamos perceber que, na verdade, Dorothea rogava desesperadamente em causa própria:
"Oh, you are a wise man, are you not? You know all about life and death. Advise me. Think what I can do. He has been laboring all his life and looking forward. He minds about nothing else. - And I mind nothing else-."
É bastante aflitivo acompanhar a jornada de uma mulher apaixonadamente ambiciosa que não consegue vislumbrar outra forma de concretizar seus sonhos, senão por intermédio de um marido.

Ah, e Ladislaw (pivô da nova briga entre Dorothea e Casaubon) está prestes a retornar. Esse quiproquó segue em suspensão. Adultério? Segundo casamento? A ver.

(2) Miss Rosamond Vincy + Mr. Lydgate
A doença de Fred Vincy acabou ajudando a tirar esses dois do chove-não-molha. Depois de uns xavecos sem graça aqui, uma intervenção da tia Bulstrode ali (à la Lady Catherine de Bourgh, de Pride and Prejudice), uma recuada assustada de Lydgate acolá e uma choradinha terna de Rosamond mais para lá; eis que os dois afinal noivaram. 

A narrativa joga várias pistas que parecem indicar que esse matrimônio também vai dar merda. Ora, o enlace até começa mediante circunstâncias, no mínimo, precipitadas. Esta certeza que Rosamond tem, de que Lydgate seria um cara com boas conexões e que, sendo estrangeiro, estaria em clara vantagem sobre os demais cavalheiros de Middlemarch... Hum, sei não. Minha aposta é que, assim como Dorothea, ela descobrirá que estava errada. Bem, vamos acompanhar. 

(3) Miss Celia Brooke + Mr. Chettam
Aqui, minha percepção é que Celia acabou ficando com as sobras da irmã. Mr. Chettam aparenta tentar reiteradamente convencer-se de que superou a esnobada que tomara de Dorothea, contudo não estou botando fé de que isso seja verdade. E se ele tiver ido lá e se contentado com a segunda da fila? A princípio, a suposta candidata número dois aceitou felizona a proposta de casamento. Resta observar.

(4) Miss Mary Garth + Mr. Fred Vincy 
Com todo meu coração, desejo que esta minha suposição revele-se completamente infundada, contudo acho que isso não acontecerá, infelizmente. O papinho cheio de segurança da Mary refutando Fred; os pais dos pombinhos contrários à união e tentando pôr juízo na cabeça dos filhos... Suspeitíssimo. Caramba, Mary consegue até sentir dó de Fred, mesmo depois que ele arruína financeiramente a família dela. Ademais, este conselho que Mary recebe do pai também sustenta bastante essa nova hipótese temática que apresentei:
"(...) a woman, let her be as good as she may, has got to put up with the life her husband makes for her. Your mother has had to put up with a good deal because of me." (Ou seja, as mulheres precisavam escolher direitinho com quem se casariam, caso contrário teriam de engolir o choro da frustração obrigatoriamente.)
Vale ressaltar, contudo, que Mary tem uma diferença crucial em relação às outras três middlemarchers citadas: ela conhece bastante bem seu pretendente Mr. Bocó Fred Vincy, e há muito tempo. Essa desculpa, ela não terá permissão de invocar, caso cometa essa presepada. A ver.
...

Claro, reconheço que não é possível colocar a culpa unicamente na conta dessas jovens, pois as particularidades do contexto geral e de cada uma delas não cooperam muito. Um aspecto curioso, por exemplo, é como toda a galera de Middlemarch gosta de meter o bedelho nos assuntos matrimoniais alheios. Todo mundo tem uma análise acertada para compartilhar a respeito de qualquer casal, real ou hipotético, da cidade. A intromissão é realmente hilária. 

Enfim, haverá mesmo um bando de esposas infelizes e frustradas, presas a maridos imprestáveis? Cenas dos próximos capítulos.


✒ Retomando a temática hipotética que lancei no DL#02 - diferentes relações entre oportunidades na vida x aproveitamentos para homens e mulheres -, houve uma fala da Mary (para Fred) que a reforça:
"(...) how can you bear to be fit for nothing in the world that is useful? And with so much good in your disposition, Fred, - you might be worth a great deal."
Ele tinha tudo para ser um sucesso na vida, e só mandava bola fora; enquanto havia personagens femininas loucas para conquistar o mundo, mas que não possuíam as mesmas chances. Outros rapazes, por sua vez, sabiam aproveitar avidamente todas as vantagens.

✒ E o narrador, hein? Modo "sangue nos olhos" ativado nesse livro, mandando diversas bordoadas maravilhosas e elaborando muita ~crítica social foda~.  Recapitulando aqui, penso que todas as personagens tomaram alfinetada dele... Aliás, começo a suspeitar de que esse narrador é ainda mais irônico do que eu havia captado. Por exemplo, agora estou incerta se aquelas defesas de personagens que ele faz (mencionei nos DLs anteriores) são realmente defesas, ou se ele estaria bancando o cínico comigo. (O momento em que ele disse "Por que sempre Dorothea? O ponto de vista dela era o único?" foi o catalisador.) Ele é extremamente capcioso, e quase o enxergo com um risinho no canto da boca, enquanto banca o imparcial comprometido com a verdade. Comentando alguns dos vários momentos magistrais:

(1) A descrição da fanfarronice representada pela figura do Fred Vincy foi espetacular. Eliot constrói frases preciosas (quase um discurso indireto livre), para demonstrar ao leitor como a personalidade desse mancebo é ensaboada. Se entendi direito, Fred é um exemplar da espécie "deixa a vida me levar"; ele é a versão do século XIX dos nossos playboyzinhos mimados da classe média, aqueles que não assumem responsabilidade com nada, que estão no mundo para curtir a vida sem estresse, uma vez que tudo se ajeita no final (= os papais se encarregam disso).
"During the vacations Fred had naturally required more amusements than he had ready money for (...)" (Naturalmente, sim; é apenas lógico.)
"(...) his assets of hopefulness had a sort of gorgeous superfluity about them." 
"(...) the universal order of things would necessarily be agreeable to an agreeable young man."  (Como as coisas não dariam certo para um rapaz tão bacana, não é?)
"(...) being implicitly convinced that he at least (...) had a right to be free from anything disagreeable."
E no fim das contas, quem é que cai na armadilha desse tipo de garoto? Indivíduos como Mr. Caleb Garth, um senhor humilde que trabalhava de graça para boa parte dos middlemarchers e que encarava o trabalho como uma religião edificante. Poxa, o pai da Mary não consegue nem mesmo culpar Fred pela presepada da dívida. Para defender-se, Fred mal hesita antes de apontar o dedo para Mr. Garth com o revoltante "ninguém mandou ele assumir minha dívida". Ódio!

O ápice da crítica que Eliot faz a esse tipo de rapaz ocorreu, para mim, neste trecho certeiro e que, assustadoramente, aplica-se à nossa sociedade atual:
"Fred was conscious that he would have been yet more severely dealt with if his family as well as himself had not secretly regarded him as Mr. Featherstone's heir (...) - just as when a youthful nobleman steals jeweler we call the act kleptomania, speak of it with a philosophical smile, and never think of his being sent to the house of correction as if he were a ragged boy who had stolen turnips."
Já no século XIX, o roubo/a merda que o jovem riquinho comete representa um mero lapso pueril a ser perdoado, a fim de não macular o futuro promissor dele. Do outro lado, o jovem pobretão, quando faz bobagens similares, vira o vagabundo que merece apodrecer detido. Fiquei bem abobalhada com isso.

(2) Eliot aproveita o caso da família Garth para demonstrar que, em Middlemarch, na hora de "fazer uma social", não importa a índole da pessoa, mas suas posses. Rolava quase um sistema de castas, onde as classes não se misturavam.
"(...) there were nice distinctions of rank in Middlemarch (...) be connected with none but equals, (...). (...) his honorable exertions had won him due esteem; but in no part of the world is genteel visiting founded on esteem, in the absence of suitable furniture and complete dinner service."
Aquela: "Diz-me teu saldo bancário, e te direi se comparecerei à tua festinha."

(3) Lydgate manda a real: doente rico é muito chato! (Eu ri; desculpe.) De quebra, ele assume que rola uma diferença de tratamento.
"But I don't really like attending such people so well as the poor. The cases are more monotonous, and one has to go through more fuss and listen more deferentially to nonsense."
(4) Sabe quando vamos às reuniões de família, e uma tia distante, que só nos vê nessas ocasiões, nos encara da cabeça aos pés? Então; tais olhadas pouco sutis - julgando/cobiçando/invejando - aconteciam em Middlemarch.
A tia: "(...) Rosamond's bonnet was so charming that it was impossible not to desire the same kind of thing for Kate, and Mrs. Bulstrode's eyes, (...) rolled round that ample circuit, while she spoke." 

A sobrinha: "Rosamond's eyes were roaming over her aunt's large embroidered collar."
(5) Para ilustrar a ironia por vezes bastante sutil do narrador; trago esta:
"Mr. Casaubon, (...) in a few days began to recover his usual condition."
Pescou? O narrador não afirma que Mr. Casaubon "melhorou"/"ficou bom", mas, sim, que recobrou sua ~condição usual~. Aquela, sabe qual? Coitado. (É, eu ri de novo.)

(6) E a descrição do rapaz sem queixo?
"To superficial observers his chin had too vanishing an aspect, looking as if it were being gradually reabsorbed." 
Brilhante!

✒ Finalizo atualizando duas listas dos DL's anteriores;
(1) DL#01 - Lista "Homens x Mulheres x Matrimônio"
Segundo Fred, as mulheres tinham a responsabilidade moral de sempre pensar o melhor a respeito dos homens, esforçando-se sempre para torná-los em pessoas melhores. Ok.
"(...), Mary. (...) It is not generous to believe the worst of a man. When you have got any power over him, I think you might try and use it to make him better; but that's is what you never do."
(2) DL #02 - Lista da "Realidade Médica no séc. XIX"
O estetoscópio começava a ser mais largamente utilizado:
"He not only used his stethoscope (which had not become a matter of course in practice at that time), (...)"
 ✒ Avante ao Livro 04! ᕕ(ᐛ)ᕗ

16/01/2017

[DL #02] Middlemarch - George Eliot (Mary Ann Evans)

Em 2016, inicio a leitura de Middlemarch pela primeira vez e tento registrar aqui um diário de leitura com possíveis postagens para cada um dos oito livros que compõem a obra. Não li previamente nada sobre o livro e desconheço quase tudo sobre ele.

Edições adotadas: 


LIVRO 02
Old and Young



✒ Estou preocupada com o destino do menino Lydgate na provinciana Middlemarch. O jovem médico chega à cidade com a admirável intenção de revolucionar a medicina do país, uma reforma e província de cada vez, porém, logo de cara, esbarra contra uma eleição bizarra para o religioso que se encarregaria de prestar auxílio espiritual aos pacientes internados nas enfermarias. O que um profissional interessado em exercer medicina baseada em evidências científicas poderia ter a ver com supostos "interesses espirituais" dos pacientes? Mr. Lydgate se faz essa pergunta e até tenta argumentar racionalmente com Mr. Bulstrode - o banqueiro influente; financiador e diretor do conselho hospitalar -, mas não consegue se safar da disputa clerical. Era Mr. Bulstrode quem mandava ali e, para ele, a medicina não era uma questão apenas de cura de doenças mortais. E é nesse meio que Lydgate pretende modernizar a ciência médica. Oh, boy; não vai prestar. 

O que me deixou realmente temerosa por esta personagem, contudo, foi constatar que Mr. Tertius Lydgate claramente ainda não tem o jogo de cintura malevolente e astucioso que a sobrevivência em uma sociedade como a de Middlemarch exige. Pois não é que esse tonto, embora entrando a contragosto como eleitor obrigatório, encara a empreitada religiosa com seriedade?! Digo, o maluco foi lá e assumiu a tarefa com toda a circunspecção possível, ponderando de forma lógica (um homem da ciência? em assunto clerical?) a respeito dos pontos fortes e fracos dos dois candidatos ao posto, tentando identificar o melhor preparado. - Mas, mas... Seu moço, por que fazer isso?! Surpreendentemente, um dos próprios clérigos candidatos, Mr. Farebrother – concorrente de Mr. Tyke, o protegido por Mr. Bulstrode - ousou falar abertamente para Lydgate que, fosse ele esperto e prudente, seu voto já deveria estar mais do que decidido: Mr. Tyke. Por que peitar o banqueirão influente e cheio da grana, votando contra o candidato dele?! Com esse simples enredo, Eliot conseguiu construir e revelar ao leitor grande parte da personalidade de Lydgate. Mesmo não se importando com questões religiosas, Lydgate não se sentiu moralmente confortável para votar de qualquer jeito, apenas atendendo prontamente aos interesses daquele que poderia beneficiar-lhe no futuro. O jovem médico não era um homem disposto a facilmente fazer concessões em troca de benesses pessoais. Claro, Lydgate vacila especialmente por conta do perfil do candidato de oposição ao Mr. Busltrode: Mr. Farebrother, outro fascinante middlemarcher; era um clérigo naturalista que admitia sua vocação religiosa duvidosa, e revelava-se um ávido entusiasta dos estudos de História Natural e Entomologia (ou seja, detinha um perfil muito mais próximo de Lydgate)! Um clérigo desses é bom demais pra ser verdade. Enfim, Lydgate ingenuamente tarda a constatar que, em Middlemarch, as complexas relações sociais influenciariam, sim, sua prática profissional. Fora dos muros da universidade, afinal, a realidade é bem diferente. 

Além das questões profissionais, vale dizer que minha apreensão pelo destino de Lydgate também relaciona-se à seara ~romântica~. Nosso narrador revela certos eventos do passado amoroso do rapaz que igualmente contribuem bastante para a composição da personalidade dele. O lance é meio intrincado, mas tentarei resumir em nome do registro pessoal, pois adorei a história.[Que tremenda imaginação, teve a Eliot, quando a escreveu!] Bem, um Lydgate mais mocinho, então estudante de medicina em Paris, se apaixona por uma atriz que, enquanto encenava com o marido no palco, acaba o matando. A mulher foge, pois a sociedade parisiense especula que teria sido um crime premeditado. Lydgate, ~cego pela paixão~, crê que tudo teria sido um acidente e, obcecadamente, revira o mundo atrás da atriz. Quando a localiza, ela confessa-lhe com frieza que matara intencionalmente o marido, tendo decidido o ato de supetão. E pior: ela nega que o marido fosse cruel, displicentemente relatando que ele apenas a cansava com sua dedicação, recusando-se a mudar de Paris para a terra natal dela. Com um trauma dessa magnitude, somado à fervorosa vocação pela Medicina, a atual indisposição de Lydgate para envolver-se novamente em frívolos casinhos amorosos não espanta em absoluto. Esse erro, ele não tem intenção de repetir, pretendendo evitá-lo pelo ajuste permanente de expectativas e de uma abordagem científica da mulher (Hein? O que diabo seria isso?! Analisar cientificamente uma mulher?). 

Acompanharei de pertinho o desenrolar dessa treta, pois já ocorre um certo flerte entre ele e Rosamond, a filha do prefeito e sobrinha (pelo lado da esposa) de Mr. Bulstrode. Será que dará merda? Todos os indícios apontam que sim. (Yay!)

* = Acabou me lembrando do Dorian Grey, que também apaixonara-se por uma atriz de teatro, a pobre Sibyl Vane. Teria Wilde se inspirado neste trecho de Middlemarch?

✒ Essa maior imersão no universo de Lydgate propiciou que a narrativa elaborasse um interessantíssimo painel histórico da realidade médica durante o século XIX, na Inglaterra; outra área que também passava por transformações e discussões reformistas.

Elencando sucintamente:
(Obs.: antes, é importante destacar que, nesse livro 2, Eliot explicita o ano em que a história se passa: 1829. Uh, minha estimativa da DL #01 (≈ 1830-32) bateu na trave!)

→ Como mencionei no início, era uma época em que clérigos circulavam pelas enfermarias, encarregados pela cura espiritual dos males dos pacientes.

→ Julgando a partir da experiência de Lydgate, os médicos superintendentes dos hospitais eram escolhidos por eleição de conselhos.

→ Lydgate defende, em Middlemarch, a criação de um "fever hospital", o que parece ser os primeiros passos em direção à criação de hospitais especializados em doenças infecciosas, com isolamentos de pacientes com doenças contagiosas.

→ Mencionam-se avanços na área da Patologia; incluindo novas pesquisas valendo-se mais extensivamente dos recursos microscópicos.

→ Desde aquela época, pelo menos, a ciência médica é uma área entremeada por intrigas, invejas e amabilidades sociais questionáveis.

→ Quanto à educação médica, o narrador afirma que o acesso era exclusivo, caro e escasso - resultado do esforço das universidades em garantir a "pureza do conhecimento" -, contudo, mesmo assim, jovens cavalheiros ignorantes conseguiam o direito de praticar a medicina. Ou seja, embora a profissão não estivesse disponível para qualquer um, havia muitos incompetentes a exercendo.

→ Em sintonia com o clima reformista do período, havia discussões sobre reformas da educação médica que envolveriam tentativas de descentralizar os centros de ensino para o interior do país. Até então, a centralização ocorria nas capitais europeias.

→ Era uma época em que a preocupação em manter-se atualizado a partir de periódicos científicos, como o Lancet, era visto com desdém e encarado de forma pejorativa. Ora, por que Lydgate ousava levar a Middlemarch as novas descobertas científicas, se a cidadezinha tinha velhos médicos tão experientes pela prática?!

→ A relação viciosa dos profissionais com a prescrição desenfreada e irresponsável de remédios parece ser questionada desde aquele período, pelo menos. A narrativa inclui uma crítica implícita à crença vigente, entre médicos e pacientes, de que a prescrição de muitos remédios garantia a excelência profissional. Por conseguinte, existiam mais e mais drogas sendo prescritas, e em posologias cada vez maiores.

E não é só! Fiquei estupefata ao descobrir que, no século XIX, havia decisão legal que impunha a obrigação da prescrição desvinculada de farmácias ou de comissões dos comércios farmacêuticos. Médicos corruptos lucrando em parceria com a indústria farmacêutica existiriam há, no mínimo, ≈ 188 anos. Impressionante.

→ Até mesmo a solidificação dos conceitos sobre Medicina Legal e, principalmente, sobre qual profissional estaria apto a exercê-la, estava em voga. Hoje é engraçado pensar (eu acho) que, em outros tempos, magistrados detentores apenas de conhecimentos legais julgavam-se exclusiva e plenamente capacitados para atuar como peritos legistas emitindo laudos de necropsia. Quero dizer, nem sei se é possível chamar o que eles emitiam de "laudo necroscópico", pois, pelo diálogo do livro, eles apenas colhiam as informações de testemunhas. Que piada.

Essa foi, inclusive, mais uma discussão entre os "sabidões" antiquados de Middlemarch que rendeu dor de cabeça para Lydgate. É importante frisar, todavia, que o jovem médico peita geral, rebatendo todos os argumentos ignorantes, e sem acanhamento ou grosseria explícita.

Sim, a luta de Mr. Lydgate é real. Mas ele até que está aguentando bem as pontas - por enquanto. Seguiremos acompanhando de perto a jornada dele. 
"Any one may see what comes of turning. If you change once, why not twenty times? (...) I am nearly seventy, Mr. Lydgate, and I go upon experience. I am not likely to follow new lights, (...)."

✒ E deu ruim para o suposto One True Pairing - OTP do livro 1: Miss Dorothea Brooke Mrs. Dorothea Casaubon e Mr. Edward Casaubon. Acho que a hipótese inicial de que os dois formariam o par perfeito dessa história pode ser completamente descartada, pois o caldo matrimonial já desandou. Eu suspeitei de que seria rápido, porém Eliot conseguiu me surpreender nessa.

Ainda na lua de mel em Roma, o narrador descreve indícios explícitos de que Dodo constata o tamanho da cagada que cometera ao casar-se com Mr. Casaubon - nas palavras do narrador: "begun to emerge from that stupidity." - (Ouch!). A dinâmica do casal por lá era, no mínimo, peculiar: ele passava o dia fora estudando na biblioteca, enquanto ela frustrava-se sozinha em casa ou em museus pelos quais não manifestava o menor interesse. Ora, os planos de Dorothea era revolucionar o mundo atuando como o braço direito ativo do seu "importante" marido estudioso, e não ser deixada de lado por um esposo que, quanto mais estudava, não demonstrava chegar a lugar algum. Para comparação aproximada, presumo que ela pretendia ser o Dr. Watson do Sherlock Holmes, e acabou sendo o Sancho Pança do Dom Quixote - e olhe lá! É, não está bonito acompanhar a magnitude da decepção de Dorothea diante da dura realidade. Até discussão durante o café da manhã e choros no quarto sozinha aconteceram durante os poucos dias de casamento.

Para tornar tudo mais divertido e complicar um pouco mais a situação, o jovem priminho de Mr. Casaubon, o Mr. Will Ladislaw, encontrava-se em Roma e, coincidentemente, cruza com Dodo em um museu e começa a se aproximar, dando claros sinais, após poucos dias, de que estava completamente apaixonado por ela. Será que o livro contará com um caso de infidelidade conjugal? Enfrento enorme dificuldade para aceitar que Dorothea, aquela moça puritana com vigorosas convicções religiosas, cometerá adultério. Será? Penso, a princípio, que seria um destino bastante cruel para ela. Bem, só me resta acompanhar.

✒ Queria registrar uma breve especulação: Mr. Lydgate e Miss Dorothea Brooke Mrs. Dorothea Casaubon parecem estabelecer, nessa narrativa, um paralelo de significado relevante. Ambos são bastante ambiciosos, dois jovens passionais que anseiam profundamente por transformar o mundo dentro de suas respectivas áreas de interesse, porém as ferramentas de que dispõem para pôr seus sonhos em prática mostram-se bem divergentes. Como homem, Mr. Lydgate está recebendo todas as oportunidades para atuar ativamente na execução de seus nobres planos - resta saber se terá habilidade necessária para o sucesso -, enquanto a moça Miss Brooke, coitada, teve de contentar-se com o papel secundário de esposa do revolucionário que, agora ela descobre, é um impostor. Claro, preciso prosseguir com a leitura, para testar essa hipótese. O que será que a narrativa reserva para esses dois?

Aproximando essa tese ao título do livro 2 - Old and Young/Velhos e Jovens -, talvez eu possa compor um grupo maior que inclua, junto de Mr. Lydgate e Miss Brooke, outras personagens jovens da história que também confrontam as velhas regras e lutam por seus vigorosos anseios. Cada uma delas parece encontrar dificuldades próprias que encaram de modo particular. Fred Vincy e Ladislaw seriam os panacas que poderiam conquistar tudo, mas não fazem nada. Rosamond é a moça pueril que acha que encontrará um mundo muito diferente fora da sociedade retrógrada de Middlemarch, atingível apenas através de um casamento. Mary Garth... É, acho que ela é a jovem mais sensata de todos, embora esteja nadando contra a maré mais forte. Torço para que tudo dê certo para ela. Mediante tal perspectiva e ampliando essa minha teoria, lanço a dúvida: estaria sendo construído um contraponto entre os jovens homens e mulheres quanto ao quesito "oportunidades x aproveitamento"? Conjecturas a serem investigadas ao longo da leitura.

De qualquer jeito, porém, acredito que Mr. Lydgate foi mesmo o principal responsável pelo título do livro 2; representando, na escala individual de Middlemarch, as mudanças que os "jovens" impunham aos "velhos" middlemarchers. Na escala nacional, o “Old and Young/Velhos e Jovens” poderia relacionar-se às mudanças reformistas pelas quais o país atravessava.

✒ Por falar em Mary Garth: necessito dedicar a essa personagem um pouco mais do que algumas míseras linhas, pois ela deu um show no livro dois e me conquistou arrebatadoramente.

Dentre os jovens personagens da história, a situação dela mostra-se como a menos vantajosa. Ela pena trabalhando como uma espécie de governanta para o intratável Mr. Featherstone e, vinda de família pobre, sua possibilidade de um casamento financeiramente favorável é remota - e isso nem parecia ser sua maior preocupação, na verdade. Apesar dessas desvantagens, Mary Garth não demonstra qualquer tipo de amargura ou ressentimento, mas, ao contrário, um pragmatismo maduro enternecedor. Ela mostra-se conformada ao admitir que não teve talento para ser professora (algo que estranho, pois ela expressa-se de modo bastante inteligente, articulado e irônico) e que, por conta disso, aceita de bom grado (?) o ofício que era plenamente capaz de executar – governanta do velho rico e chato.

Há um diálogo excelente entre ela e Fred Vincy, durante o qual ele tenta convencê-la de que ela era a responsável por ele não tomar jeito na vida dedicando-se ao teste para clérigo, visto que Mary não aceitava casar-se com ele (coisa que nem os pais desejavam). Na cabeça do paspalho, ele estaria metido na enrascada de dívidas por culpa dela. Contudo, atirando argumentos certeiros e perspicazes, Mary consegue desmontar o discurso ridículo de Fred. Ora, apenas ele poderia ser responsável pela própria vida. A conveniência de lançar sobre os outros a culpa de nossos erros é sempre tão tentadora e acolhedora, não é?

Quando Fred sugere que Mr. John Waule (sobrinho de Mr. Featherstone) estaria apaixonado por ela, surge também outro excelente momento de Mary, que contesta a equivocada concepção geral de que mulheres inevitavelmente apaixonam-se por homens que as tratam bem:
"(...) it is one of the most odious things in a girl's life, that there must always be some supposition of falling in love coming between her and any man who is kind to her, and to whom she was grateful. I should have thought that I, at least, might have been safe from all that. I have no ground for the nonsensical vanity of fancying everybody who comes near me is in love with me." 
E como se não bastasse, ela aparenta ser uma leitora voraz, tendo recorrido às personagens femininas das peças de Shakespeare para testar a suposição de Fred de que mulheres nunca se apaixonariam por aqueles que conhecem desde sempre. Estou achando que Mary Garth tem algo que remete demais à Elizabeth Bennet (personagem de Pride and Prejudice, da Jane Austen) e, até aqui, ela é minha personagem favorita disparadamente. 

Obs.: ainda a respeito do Fred, ressalto que é bem curiosa a ironia de tentar resolver o futuro dele, atirando-o para o ofício religioso. Religião como tábua de salvação financeira para as famílias, garantindo clérigos sem vocação para o país? Ok, então.

✒ Para encerrar essa entrada, creio que é obrigatório falar novamente do Narrador desse livro, pois ele tem, de fato, características muito particulares e interessantes. Houve uma passagem em que ele falou de si próprio, identificando-se como um "historiador tardo" preocupado em concentrar-se nas tramas específicas dos destinos humanos que estão sob sua responsabilidade. É um narrador que assume um compromisso explícito com suas personagens e com o leitor! Poxa, achei isso fascinante.

O Narrador apresenta essa confissão quando prepara-se para nos revelar a verdadeira essência de Mr. Lydgate, pois o objetivo declarado dele é que conheçamos profundamente o médico, melhor do que qualquer middlemarcher poderia.

Nesse contexto, o Narrador discute um tema que considero bastante relevante: usualmente utilizamos apenas um amontoado de falsas suposições para construir as impressões relacionadas ao caráter das outras pessoas. Ou seja, a grande realidade é que ninguém conhece ninguém verdadeiramente. Por que dedicar tempo tentando conhecer melhor alguém, se podemos partir para conclusões precipitadas que atendam a nossos interesses, confere? Em Middlemarch, a situação não era diferente, contudo o Narrador faz questão de que nós, leitores, estejamos melhor informados.
"É bem provável que ninguém em Middlemarch tivesse uma ideia do passado de Lydgate tal como aqui rapidamente esboçado; os respeitáveis moradores locais, com efeito, não se davam mais do que os mortais em geral as tentativas ciosas de exatidão na representação mental de algo que não entrasse diretamente em contato com seus sentidos. Não só as jovens virgens da cidade, como também homens de barba grisalha, precipitavam-se não raro em conjecturas para saber como um novo conhecido poderia ser envolvido em seus planos, contentes com um conhecimento muito vago do modo pelo qual a vida o estivera até então forjando para esta instrumentalidade. Middlemarch, de fato, contava com engolir Lydgate e assimilá-lo da maneira mais cômoda."
(Ai, será que Lydgate deixará ser engolido pelos middlemarchers?! Estou aflita por ele e pela maioria das personagens.)

✒ P.S.: admito que escrever sobre Middlemarch de forma concisa tem se mostrado um grande desafio, pois, em pouco mais de 100 páginas, George Eliot insere diversos elementos a serem explorados. Minha impressão, como leitora comum, é que essa obra admite uma quantidade quase infinita de chaves de interpretação. Por exemplo, nem tenho comentado sobre as epígrafes de cada capítulo, mas chutaria que apenas o estudo delas – conjuntamente com os títulos dos livros - garantiria uma tese de mestrado. As epígrafes são fantásticas, e algumas intrigam-me demais.

Estou achando esse livro cada vez mais espetacular.

✒ P.S. 2: apesar do ritmo indefinido, tentarei, a partir de agora, priorizar essa leitura, caso contrário terminarei Middlemarch só em 2018! Um livro/semana será o objetivo. Oremos.