06/10/2022

[alinhavando] He'll make a tree from me


Em um grupo de pessoas vestidas de luto
um garoto
olha encantado um pé de caqui.
— Abbas Kiarostami
(Tradutor: Pedro Fonseca)

Assistindo a um vlog de viagem no You Tube (despretensioso, feito por quem não é influenciadora), fui surpreendida pela seguinte confidência da turista: "Estou fascinada pelas árvores daqui. Vou mostrar minha árvore favorita." Sem exagero, afirmo ter sido uma das coisas mais delicadas que já ouvi — num vídeo de viagem, ao menos. Nos dias seguintes, o comentário da vlogueira persistiu ecoando na cabeça e me vi consumida pela triste constatação de que não tenho uma árvore favorita. Por que e como isso aconteceu? Não sei; no entanto fui tomada pela certeza de que preciso encontrar minha árvore favorita. Desse modo, durante as caminhadas no parque, resolvi parar de observar os passarinhos (é um observatório fabuloso), a fim de reparar nas árvores. A dificuldade da empreitada logo superou a prevista, sobretudo porque atinei que sequer sei o que procurar ou registrar, durante a observação. Em outras palavras: o que torna uma árvore a favorita de alguém?

Calculei que seria um bom momento para ler Meu Pé de Laranja Lima, de José Mauro de Vasconcelos (não, nunca tinha lido), contudo a obra só me deixou mais confusa. Para começo de conversa, Zezé não exatamente escolhe o pé de laranja lima como seu favorito. Na narrativa, o processo corresponde a um feliz encontro resultado do acaso: a família se muda de casa, cada irmãozinho escolhe uma árvore para chamar de sua e, a Zezé, sobra aquele pequenino pé de laranja lima. Descobri, também, que eu não apenas necessito encontrar minha árvore favorita, como terei de nomeá-la. Zezé, por exemplo, batiza sua plantinha de Minguinho, com direito ao apelido carinhoso de Xuxuruca. E até seu amigo português (um adulto) tem uma árvore favorita chamada Rainha Carlota, ainda que ele sempre a trate por Majestade. — Então é isto: todo mundo tem uma árvore favorita, menos eu. Ah, pronto. — Puxa vida, mas como eu poderia nomear uma árvore? Aquelas do parque se apresentam a mim tão imponentes e majestosas que, estou segura, jamais aceitariam ser nomeadas por uma humana. A propósito, o pé de laranja lima de Zezé fala (oh yeah), portanto teorizo que, na verdade, tenho de ouvir o nome das árvores, que elas próprias me dirão. Bom, nem preciso contar que não consegui ouvir nada, preciso? Para ouvi-las, possivelmente tenho de pedir a Deus meu passarinho de volta; aquele passarinho que, segundo o tio de Zezé, eu teria devolvido ao chegar (supostamente) na idade da razão.

Retornando ao vídeo da vlogueira, para checar se ela explica o motivo daquela danada ser sua favorita, me deparei com isto: "Minha árvore favorita, ali está ele. Ou ela. Ele/Ela tem um certo ar que impressiona." Ah, pois é, outro problema a sanar: qual será o gênero da minha árvore favorita? Que imbróglio. Enfim, ao prestar melhor atenção nas árvores, sinto, conforme adiantei, uma presença bastante grandiosa, o tal ar que impressiona dito pela youtuber, porém isso se aplica a todas elas. Por outro lado, notei que cada uma emana, de fato, certa particularidade cuja percepção exige sensibilidade do observador. No ótimo livro Lembranças do Porvir, escrito pela mexicana Elena Garro, há uma passagem que aborda, de um jeito engraçado e preciso, essa questão à qual me refiro. A costureira Blandina vai até a casa dos Moncada, para preparar o enxoval dos filhos da família que partiriam em breve, e informa que, para trabalhar, não pode ficar entre paredes, sendo necessário que ela veja folhas. O detalhe é que não pode ser qualquer folha: 

"—Aqui está bem, dona Blandina?
— Não, não, não! Vamos para lá, em frente às tulipas... estas samambaias são muito intrigantes...!"

Colocada de frente às tulipas, nova queixa:
Muito vistosos! Muito vistosos! - disse com desgosto. Se não se incomodam prefiro estar em frente às magnólias."

Posicionada então diante das magnólias, outra reclamação:
"São muito solenes e me deixam triste."

Após testar a paciência da família, aqui está o ângulo da varanda no qual Blandina se encontra (grifo meu):
"— Daqui só vejo a folhagem; o alheio se perde entre o verde."

                                                                — Elena Garro, Lembranças do Porvir (Tradução: Iara Tizzot)


Quer dizer, umas são intrigantes, outras vistosas e algumas solenes. Por sinal, lembro que a série Dickinson também explora brevemente esse mesmo ponto, mediante esta personagem* que atesta a impossibilidade de paz, quando estamos sentados ao lado de uma roseira:  
(* = Ninguém menos que Frederick Law Olmsted, o paisagista responsável pelo projeto do Central Park.)

No meu caso, porém, o que prevalece durante as caminhadas é a forte sensação de ser observada atentamente pelas árvores. Por alguma razão que não sei explicar, inclusive, sinto que elas me observam a partir de suas cascas. É provável que isso decorra do simples fato de que as cascas estão facilmente à mostra, logo na altura de meus olhos, refletindo meu próprio olhar. Além disso, admito que a casca é o que mais tem chamado minha atenção; e fico apalermada diante da encantadora variedade de formas, cores, texturas, desenhos — a imagem no início do post são algumas cascas fotografadas durante recentes andanças. Dessa maneira, conjecturei que encontraria minha árvore favorita, caso seguisse as pistas das cascas. Assim, lembrei que o filósofo Georges Didi-Huberman escreveu um livro intitulado Cascas, o qual saquei para imediata leitura. Tal qual Meu Pé de Laranja Lima, o livro de Didi-Huberman não me ajudou tanto, visto que a obra realmente concentra-se na reflexão filosófica acerca de como recordar/ler o passado do holocausto; quer dizer, como construir e preservar essa memória para efeitos no presente. Simultaneamente, porém, foi bastante intrigante constatar que, durante a visita ao campo de concentração Birkenau, o filósofo foi tomado pela urgência exata de arrancar lascas de cascas das Bétulas que povoam o bosque daquele local. Nas palavras do autor (tradução: André Telles): "(...) três lascas de tempo. Meu próprio tempo em lascas: um pedaço de memória, essa coisa não escrita que tento ler; um pedaço de presente aqui, sob meus olhos, sobre a branca página; (...)". Ao descrever as Bétulas que testemunharam o horror ali cometido contra os judeus, Didi-Huberman diz que seus troncos possuem uma enorme força visual que chega até a tornar discreto o arame farpado, os postes de cimento e os fios eletrificados do campo. Ainda segundo o autor, as Bétulas transmitem uma paradoxal serenidade verdejante, com toda a delicada beleza dos troncos brancos com suas manchas, que evocam resquícios de alguma partitura musical. Em consequência, ele me ajudou a perceber que os relevos de um dos troncos que avistei remete a caixinhas de música (!).  Ao contrário de Zezé, quem sabe eu precise estar atenta para ouvir não a fala verbal, mas sim a música das árvores...? Melhor: tocá-las para ouvi-las? [Vixe, neste ritmo, logo virarei a louca que abraça árvores.]


Didi-Huberman assegura que a casca das árvores não exatamente equivale àquela mera superfície que esconde a verdadeira essência das coisas; afirmando que as árvores se exprimem pela casca; ou que, em todo caso, elas se oferecem ao exterior mediante as cascas. Esse pressuposto é usado pelo autor como metáfora para fundamentar a necessidade de olharmos feito arqueólogos o espaço soterrado do campo de concentração, a fim de localizar elementos que ajudarão a firmar a memória daquele evento histórico. Embora a fundamentação faça sentido, não nego que ela acabou por estremecer minha impressão de que as árvores estariam me encarando de volta a partir de suas cascas; quero dizer, a palavra "superfície" permaneceu piscando pra mim. Para piorar, durante a rápida pesquisa feita objetivando rememorar informações biológicas sobre cascas, esbarrei com o óbvio: essa é a parte morta da árvore, logo como elas poderiam estar me enxergando pela casca?! Felizmente, entretanto, meu sentimento de estupidez se esvaiu quando minha memória catapultou à superfície (😉) um trecho do ensaio The Naive Reader, no qual a poeta dinamarquesa Inger Christensen escreve (tradução dinamarquês ➝ inglês: Susanna Nied; inglês ➝ português: minha):
"Eu consigo enxergar uma árvore, enquanto a árvore presumivelmente não consegue me enxergar. Mas o que significa "enxergar"? Isso é linguagem humana. É claro que é correto dizer que uma árvore não enxergou nada, porém, à sua maneira, a árvore me enxergou. Ela registrou presença humana, nem que tenha sido nada além da poluição do ar. (...)"

                                                                           — Inger Christensen, The Naive Reader 

Certo; reescreverei, portanto, minha declaração: as árvores do parque registram minha presença. O curioso é que, naquela mesma pesquisa, o Google acidentalmente (?) me mostrou um artigo que aborda a possibilidade de avaliar a qualidade do ar a partir do estudo da casca das árvores. (Link: X)

Ao revisar os procedimentos desta busca, aventei a possibilidade de que talvez eu não esteja observando direito; falha que potencialmente possa ser corrigida, caso eu me dedique ao desenho e à pintura das árvores do parque. Essa hipótese me foi soprada ao ouvido pelo pintor David Hockney que, no livro A Bigger Message, explica a Martin Gayford que desenhar nos permite ver melhor e cada vez mais claro, nos permite enxergar o mundo com maior intensidade. Na ocasião em que tivera essa conversa com Gayford, a obra de Hockney estava marcada pela presença de árvores que, na opinião do pintor, são a maior manifestação de força vital que testemunhamos, cada uma única — e Gayford complementa (no que Blandina concordaria): gigantes vegetais, algumas heroicas, algumas elegantes, outras sinistras. Fiquei aliviada quando Hockney acrescenta que árvores não são fáceis de desenhar, especialmente a folhagem — "não parecem seguir as leis da perspectiva, com linhas seguindo em todas as direções" — porque eu mesma enfrento muita dificuldade ao tentar desenhá-las. Das pinturas que já fiz, gosto desta onde, sem surpresas, predominam tronco e casca (*aquarela):


O que ocupa minha mente nos momentos em que contemplo as várias árvores do parque, em especial agora que sinto e vejo incontestáveis sinais de envelhecimento em meu corpo, é sobretudo o verso de Tom Waits usado para intitular esta postagem: He'll make a tree from me / ~Ele fará, de mim, uma árvore  (música Green Grass voltando ao blog). Ou seja, é o pensamento de que se aproxima a hora em que cederei todos os meus átomos para a eventual constituição de uma daquelas (ou outras) árvores. Nem de longe trata-se de um sentimento mórbido ou pesaroso. Juan Ramón Jimenez, no lindo livro Platero e Eu, escreveu de modo muito mais bonito e certeiro o que tento expressar. Colarei o trecho aqui, extraído do breve poema em prosa no qual o autor nos diz o que percorre seus pensamentos, quando ele avista o pinheiro no alto da montanha da cidade espanhola de Moguer (grifo meu):
"Quando, no vaguear de meus pensamentos, as imagens arbitrárias se colocam onde querem, ou nos instantes em que há coisas que se veem como numa segunda visão e à parte do que é distinto, o pinheiro do Alto da Montanha, transfigurado como que num quadro de eternidade, surge-me mais eloquente e mais gigantesco ainda, na dúvida, chamando-me para descansar em sua paz, como o término verdadeiro e eterno de minha viagem pela vida."

                                                 — Juan Ramón Jiménez; Platero e Eu (Tradução: Monica Stahel)


Por ora, sou obrigada a encerrar esta postagem sem que eu tenha encontrado minha árvore favorita. Acredito que seja uma questão de acaso realmente. Ou talvez eu não esteja pronta. Não chegou a hora? Falta a vivência de uma história, que construirá uma memória afetiva? No máximo, tenho uma árvore que já há algum tempo me é muito querida: um ipê amarelo localizado em frente à rodoviária de Brasília. Quando está todo florido, esse ipê vive rodeado por pessoas tirando fotos; porém basta que suas flores amarelas caiam e seus galhos sejam tomados por abundantes folhas verdes, para que todos esqueçam dele. Desde que notei isso, faço questão de travar um diálogo silencioso com o Ipezinho da rodoviária, sempre que passo por ele durante trajetos de ônibus: "Olá, Ipezinho, estou te vendo e você segue bonito como sempre." Ao mesmo tempo, que sei eu daquele Ipezinho? É possível que ele nem curta a badalação e prefira não ser importunado. Sua voz ou sua música, nunca consegui ouvir, então eu não saberia dizer. De qualquer forma, ressaltarei que estas duas do parque em que caminho, que aparentam se abraçar (brigar por espaço?! xi), aos poucos me fazem sorrir:

11/08/2022

[alinhavando] Em que espelho ficou perdida a minha face?

 [— Retrato, Cecília Meireles]

Em Seeing Ourselves - Women's Self-Portraits (2016, edição revista e atualizada), Frances Borzello reúne autorretratos de mulheres (curadoria focada na Europa, notadamente Inglaterra; iniciando-se no século XVI), com a finalidade de investigar as razões por trás da maneira com que artistas mulheres se retrataram ao longo dos séculos. Em linhas gerais, a autora defende que os temas e gêneros observados nos autorretratos resultam largamente, em cada período, da combinação destes principais fatores: a respectiva situação das mulheres no mundo das artes, as ideias contemporâneas e os estilos artísticos do momento histórico específico. Quer dizer, não é possível falar de uma suposta essência fixa da artista mulher, pois costumes e atitudes de cada tempo afetam a concepção do trabalho e, claro, a leitura feita pelo público. 

Alguns elementos tornam instigante essa perspectiva do autorretrato (pra mim, pelo menos). Primeiro, há enorme curiosidade em saber o que acontece quando a mulher se liberta da posição de objeto retratado por homens e assume, ela própria, o manejo dos pincéis e das tintas (ou de outro meio), a fim de se autorretratar. Além disso, Borzello faz uma ressalva pertinente: no momento de planejar um autorretrato, as mulheres que iniciaram essa linhagem artística não tiveram referências nas quais se ancorar. Para modelos e parâmetros formais em pinturas de paisagens, por exemplo, elas sabiam a que recorrer; porém como uma mulher deveria se autorretratar? Os autorretratos feitos por homens não se mostravam apropriados, pois, em épocas passadas, dificilmente uma mulher ousaria se apresentar com o mesmo ar altivo, orgulhoso ou de boêmio desleixado, habitualmente observados naquelas obras. Ou seja, as artistas precisaram encontrar sua linguagem. No mais, é importante recordar que, até aproximadamente metade do século XIX, havia barreiras artísticas concretas e objetivas a serem superadas, dentre as quais o impedimento de ingressar em escolas de arte e de frequentar exercícios de pintura do nu com modelos vivos — com o agravante de que, durante muito tempo, os nus foram as pinturas mais valorizadas no universo da arte. Aliás, mesmo quando tais espaços começaram a se abrir para mulheres, as dificuldades persistiram. Em 1870, a jovem russa Marie Bashkirtseff se mudou para França com o propósito de estudar arte, e seus diários trazem o valioso registro da dimensão das adversidades enfrentadas pelas artistas, deixando evidente que os professores jamais permitiam às estudantes esquecerem de que eram mulheres. Transcreverei algumas passagens desse diário incluídas no livro de Borzello (tradução e grifos meus): 
"(...) ele (o professor) sugeriu o tema, disse que um estúdio de mulher nunca havia sido pintado. (...) como lhe serviria de propaganda, ele faria tudo para me garantir a maravilhosa notoriedade de que ele tanto falava. (...)  
O que anseio é a liberdade de sair por aí sozinha, de ir e vir, de sentar nos bancos do Jardim das Tulherias e especialmente no de Luxemburgo, de parar e olhar as lojas de arte, de entrar em igrejas e museus, de andar pelas velhas ruas à noite; é isso que desejo; e essa é a liberdade sem a qual não é possível tornar-se uma verdadeira artista. Como posso tirar máximo proveito daquilo que vejo, sendo escoltada o tempo todo; quando, para ir ao Louvre, preciso esperar a carruagem, uma dama de companhia ou um parente?"
                                                                  — Marie Bashkirtseff, The Journal of Marie Bashkirtseff 

Com Seeing Ouselves, descobri que, no século XVIII, havia inclusive livros que desencorajavam mulheres a usar tinta a óleo — com o fundamento de que são excessivamente difíceis para mulheres, que portanto deveriam se ater ao pastel oleoso e à aquarela e que as desaconselhavam, veja só, a pintar retratos, pois são gêneros que não perdoam erros — as mulheres deveriam, isto sim, dedicar-se à pintura de flores. Bicho; a desfaçatez da galera, né? Depois dessa, me peguei confabulando se o trabalho de Georgia O'Keeffe teria alguma relação com esse fato histórico. Digo, teria passado pela cabeça dela algo do tipo "vocês querem que eu pinte florzinhas? Pois muito bem, pintarei "florzinhas""? Não faço ideia, no entanto me diverti pensando nessa possibilidade.
 
Visto que sequer pretendo resumir ou resenhar este livro, acredito que escrevi até demais. Na verdade, o trago ao blog por causa da surpresa que tive diante da evidência de um histórico diálogo artístico construído não só entre as próprias pintoras (do que resulta a lenta, porém gradativa, formação de uma linhagem), mas também entre mulheres artistas de áreas diversas. Explico. No capítulo sobre o século XX, Borzello ressalta que, alguns anos antes da publicação do livro A Room of One's Own (1929), de Virginia Woolf, já era possível encontrar em quadros de pintoras a temática da importância de um espaço particular para aquelas mulheres que pretendiam seguir carreira artística. Não é fabuloso?! Em retrospecto, me parece um tanto óbvio, contudo assumo que essa possibilidade jamais havia passado por minha cabeça. Dentre as pintoras que inauguraram, naquele século, o gênero de autorretratos baseados na pintura do ateliê da artista, Borzello cita as seguintes (colo, abaixo, imagens das obras inclusas no livro):

- Gwen John ⇒ por duas vezes, pintou seu amado quarto em Paris (1907-9);
- Emily Charmy ⇒ em 1900, pintou o primeiro dos vários de seus autorretratos concebidos a partir da imagem do quarto onde trabalhava;

- Gabriele Münter ⇒ no autorretrato, mostra-se trabalhando em seu ateliê (1909);
- Nina Simonovitch-Efimova ⇒ em 1916-17, produziu um quadro espacialmente complexo, no qual ela figura de corpo inteiro, no espelho de seu estúdio.

Por grata coincidência, acabei constatando que o livro de ficção que eu lia paralelamente à leitura de Seeing Ourselves, Women's Self-Portraits também aparentava dialogar com obras de pintoras. Ao longo do século XX, Borzello refere que a temática da velhice tornou-se cada vez mais frequente nos autorretratos de mulheres, fato possivelmente relacionado (segundo a autora) ao maior número de mulheres artistas e à maior expectativa de vida. Outra distinção é que, a partir desse século, o retrato da velhice feminina nem sempre se revestia de ares, digamos, singelos. A seguir, fixo algumas obras compiladas por Borzello, nas quais a velhice é retratada como uma experiência cruel e macabra; das artistas (em sentido horário, início no canto superior esquerdo:) Käthe Kollwitz (1925-30), Alice Neel (1958), Meret Oppenheim (1964), Helene Schjerfbeck (1945).


Quando alcancei este ponto do livro de Borzello, minha leitura simultânea da obra A Pianista, de Elfried Jelinek, aproximava-se da metade. Por conseguinte, pude constatar que, neste livro publicado em 1983, Jelinek unia-se às artistas plásticas que, desde o início do século XX, começaram a retratar a experiência do envelhecimento sob uma perspectiva dura e brutal. Minha situação chegou a ser cômica, pois eu havia decidido ler A Pianista na esperança de que oferecesse algum conforto à minha própria experiência de envelhecer (desde logo espinhosa), uma vez que o livro supostamente exploraria o tema do erotismo mediante o relacionamento de uma mulher mais velha com um jovem aluno. Puxa vida, o tombo que eu levei — tantas leituras, e ainda não aprendi que literatura não conforta ninguém. Na realidade, Elfried Jelinek é assustadoramente cruel com sua protagonista, uma mulher beirando os quarenta anos, que não conseguiu realizar nenhum de seus desejos; mesmo porque, coitada, mal sabe quais são. As possíveis expectativas de leitura desmoronam tão logo ultrapassa-se o título - A  pianista - e lê-se a primeira frase do livro: "A professora de piano Erika Kohut entra como um furacão no apartamento onde vive com sua mãe." (Tradução: Luis S. Krausz) Quer dizer, a mulher não é pianista, mas, sim, professora de piano. Sem querer ofender professores, há de se concordar que a autora, logo na largada, deliberadamente finca uma distinção relevante nos possíveis papéis da personagem, a qual se aprofunda à medida que conhecemos a trajetória de Erika (ela teria nascido para brilhar como pianista; não como professora). 

Enfim, conforme adiantei, a narrativa de Jelinek trata com uma brutalidade exasperadora o envelhecimento dessa personagem; e, após esbarrar com os comentários de Borzello em Seeing Ourselves, iniciei um levantamento sistemático das respectivas passagens. Revisando minhas anotações, decido trazer estes trechos:


"Por fora, seu rosto ficou grande demais, e esse processo há de continuar por anos a fio, até que a carne sob a pele encolha, desapareça, e a pele se grude na cabeça morta, que não mais a aquecerá. Na cabeleira, fios brancos são nutridos por sucos apodrecidos e se multiplicam sem parar, até que surjam ninhos de um cinza feio, nos quais nada nasce (...)"
(⇒ Está mentindo? Eu bem gostaria que estivesse.)

"(...) vê homens jovens com corpos jovens andando de um lado para o outro, porque, pela sua idade, ela quase poderia ser mãe deles. Tudo o que aconteceu antes de ela chegar à sua idade atual passou, irrevogavelmente, e nunca poderá ser repetido. Mas quem é que sabe o que o futuro trará? Com os padrões elevados da medicina atual, a mulher pode exercer suas funções femininas até uma idade avançada." (⇒ Beleza; então o lance é ligar pra Jennifer Lopez e pedir os contatos dos médicos dela, anotar a rotina de skincare e de musculação etc. Ah, e pedir que ela compartilhe a conta bancária e a genética.)

"Velhas com lenços de cabeça, que dão o último passeio do dia com seus cachorros, esperando que, uma única vez, encontrem um velho solitário que também tenha um cachorro e além disso seja viúvo." (⇒ Jelinek passando o rolo compressor nas ilusões das jovens senhoras. Ok; o lenço e o cachorro - ou gato - até enxergo num futuro próximo, mas será que realmente procurarei um viúvo? Poxa.)

"(...) O técnico Klemmer calcula (...) Erika ainda tem um pouquinho de tempo antes de ir para a cova. (...) Mas, no final, o que conta são só as rugas, marcas, celulite, cabelos brancos, bolsas sob os olhos, poros dilatados, dentaduras, óculos, desfiguramento." (⇒ hahahahahaha 😢)

"Hoje Erika tem o dobro da idade de uma menina de dezoito anos! Ela repete a conta, incessantemente, e a distância entre Erika e uma menina de dezoito anos nunca diminui, mas também não aumenta. A antipatia que ela sente por todas as meninas dessa idade aumenta desnecessariamente essa distância." (⇒ É interessante que Jelinek tenha abordado esse aspecto do rancor em face dos mais jovens. No meu caso, o sentimento volta-se mais para a questão da saúde física (ando cheia de dores); havendo momentos em que me pego pensando coisas do tipo "Olha ali; lá vai o jovem sonso todo se achando, só porque seu pescoço dá conta de sustentar a cabeça." Pior que é engraçado, né? Ai, sei lá.)

Encerrarei aqui, pois acredito que já é possível confirmar o quanto a narrativa de Jelinek reverbera aquelas obras de Käthe Kollwitz, Alice Neel, Meret Oppenheim, Helene Schjerfbeck. [Apenas como registro, anoto minha teoria de que a personagem Erika é, no entanto, um artifício narrativo mediante o qual Jelinek, na verdade, fala sobre/critica a Áustria.] Simultaneamente, é válido ressaltar que nem sempre o envelhecimento surge como algo tão impiedoso nos trabalhos das artistas. O autorretrato pintado por Alice Neel em 1980, por exemplo, me pareceu admirável. Assim o descreve Frances Borzello: 





"Embora ela tenha ares de uma vovó delicada, nada se encaixa no estereótipo; desde as cores fortes e vibrantes até a aceitação de sua nudez. Longe de parecer patética ou feia, a mão direita segurando a ponta do pincel, (...) a concentração em seu rosto confere legitimação de sua nudez idosa."







Para finalizar, confesso (com certa vergonha) que eu mesma acabei cometendo um autorretrato, o qual encerrará o post. Gosto bastante de desenhar e pintar, porém não tenho talento nenhum; portanto, numa hipotética futura edição atualizada do livro de Borzello, meu pobre autorretrato sequer figurará dentre aqueles das amadoras do século XXI. De qualquer jeito, foi como escolhi me expressar hoje, e talvez isso baste para ilustrar este blog irrelevante. Cogitei explicá-lo, mas sabe como é: ~uma artista não explica sua arte~. 😁 
Autorretrato (07/2022; aquarela)
Daniela - Correndo entre Livros